Decisão judicial traz à tona debate sobre a intolerância contra religiões de matriz africana – Por Natasha Pitts

Há alguns dias, a decisão polêmica do juiz Eugenio Rosa de Araújo, da 17ª Vara Federal do Rio de Janeiro, causou indignação. 

Ao ser solicitado pelo Ministério Público Federal (MPF) para a retirada de vídeos da Internet com conteúdo ofensivo contra religiões de matriz africana, o magistrado negou o pedido com a justificativa de que candomblé e umbanda não seriam religiões, pois não têm os traços necessários (existência de um texto base, de estrutura hierárquica e de um deus a ser venerado) para serem caracterizadas como tal. 

A partir daí, ganharam força manifestações de apoio às religiões de terreiro e o clamor popular fez o juiz reconhecer que os cultos afros constituem, de fato, religiões. Contudo, a decisão pela não retirada dos vídeos foi mantida em nome da "liberdade de expressão”.

O fato deu abertura a debates e questionamentos. Afinal, a decisão do magistrado pode ser compreendida como uma manifestação de intolerância religiosa? Por que negar direitos já estabelecidos na legislação brasileira?

O Código Civil estabelece que "são livres a criação, a organização, a estruturação interna e o funcionamento das organizações religiosas, sendo vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento ou registro dos atos constitutivos e necessários ao seu funcionamento”. 

O artigo 5º da Constituição Federal também enuncia que "o Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e as de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional”.

"As pessoas que vivem as religiões de matriz africana consideram que vivem uma religião e uma experiência religiosa e isso deveria bastar. Consideram, também, que suas religiões compartilham elementos comuns e elementos diferentes em relação a outras manifestações também intituladas religiosas. O importante para elas, creio, é que sejam reconhecidos simultaneamente o caráter profundamente religioso de suas ideias e de suas práticas, e os modos singulares pelos quais essas ideias são pensadas e essas práticas são elaboradas”, defende em entrevista à Adital Marcio Goldman, professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Não é de hoje que as religiões de matriz africana são tratadas com preconceito, medo e repúdio, sentimentos que podem ser oriundos do desconhecimento sobre as práticas religiosas de terreiro. 

Apesar disso, pelo menos desde meados do século XIX, as religiões de matriz africana que se instalaram no Brasil conseguiram recriar em sua nova casa, as crenças e os rituais de sua tradição ancestral, respeitando, inclusive, os princípios científicos que definem o que seja religião.

O sociólogo e pesquisador do Instituto de Estudos da Religião (Iser) do Rio de Janeiro, Clemir Fernandes, lembra que o diferente quase sempre é motivo "mais de desconforto do que de simpatia e acolhimento”. 

Sendo assim, os preconceitos e seus desdobramentos como as intolerâncias surgem de um ambiente de estigma da diferença, ao invés de perceber beleza e interesse pela alteridade.

"As mudanças sociais, notadamente as alterações de pertencimento religioso porque tem passado a sociedade brasileira, em especial nos últimos 30 anos, conduziram ao cenário que temos hoje. Sempre houve intolerância religiosa em nossa sociedade, mas era ignorada, camuflada ou não divulgada. Até por conta do contexto autoritário, sem liberdade de manifestação e de acesso aos meios de comunicação dos grupos mais estigmatizados. Num mundo plural e de mais democracia, a diversidade aumenta e as tensões também. As bases de nossa formação como nação resultam numa identidade nacional mais forte do que qualquer outra, mesmo a religiosa. Bem diferente de alguns outros países. Talvez por isso, as intolerâncias tenham crescido aqui, mas não chegado a níveis alarmantes de violências inclusive com mortes frequentes como ocorre em outras partes do mundo”, explica.

O sociólogo também lembra que no contexto brasileiro as religiões chamadas de matriz africana sofreram estigma, preconceito e violência de demonização desde os primórdios do período colonial. "Isso está enraizado na cultura e tem se reproduzido secularmente”, esclarece.

Analisando a decisão do magistrado, Goldman aponta que, muitas vezes, decisões na aparência puramente jurídicas acabam corroborando práticas de discriminação.

"A chamada ‘liberdade de expressão’ é constantemente utilizada como cobertura legal para declarações e práticas extremamente discriminatórias. Se recordarmos, por exemplo, a violenta reação social, política e jurídica quando do episódio chamado de "chute na santa”, podemos perceber que, no caso das ofensas às religiões de matriz africana, o princípio da ‘liberdade de expressão’ foi considerado mais importante do que os de liberdade religiosa e de não discriminação religiosa, que prevaleceram no caso das ofensas ao catolicismo”.

Nas redes sociais e meios de comunicação, babalorixás, filhos de santo e frequentadores de terreiros manifestaram o temor de que a decisão do magistrado pudesse causar um agravamento do preconceito, da discriminação e até mesmo dos atos de violência tão comuns contra essas religiões. 

Goldman acrescenta ainda que, "no caso dessas religiões que abrigam um grande contingente de pessoas negras, o preconceito, a discriminação e a violência propriamente religiosos são indissociáveis do racismo que permeia a sociedade brasileira”.

Fernandes analisa o acontecido por outro ângulo e defende que "paradoxalmente, pode se dizer que a decisão do juiz foi ‘positiva’ porque tira da penumbra uma visão e ajuda a qualificar e ampliar o debate acerca da cidadania para todos, inclusive de natureza religiosa. Sem discriminação”, defende.

O fato é que as tensões de natureza religiosa são comuns e surgem do aumento da pluralidade de crenças, apesar disso, a cada um deve ser dado o direito de professar sua fé e tê-la reconhecida e respeitada, ao invés de tolerada.

"A própria noção de "tolerância” deveria ser problematizada uma vez que ela, em geral, designa, como escreveu o antropólogo Claude Lévi-Strauss, "uma posição contemplativa, dispensando as indulgências ao que foi ou que é”. O que significa que a tolerância sempre envolve um sentimento de superioridade que permite até mesmo ser "tolerante” com os outros. O ponto, creio, não é clamar por tolerância, mas lutar por um mundo em que as diferenças possam se relacionar enquanto diferenças, sem se apagar, um mundo em que todos sejamos afetados pelas relações que inevitavelmente estabelecemos com o diferente”, defendeu Goldman.





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