Nota da Pastoral Carcerária sobre o "mensalão”
Estamos onde sempre estivemos
Após as recentes decisões do
presidente do STF, ministro Joaquim Barbosa, no caso conhecido como
"mensalão” (Ação Penal 470), amplamente divulgadas pela mídia e
repercutidas entre juristas e organizações de classe, vários foram os
questionamentos dirigidos à Pastoral Carcerária, que há décadas atua nos
cárceres brasileiros ao lado dos presos e seus familiares, razão pela qual
entendemos oportuno expor nosso posicionamento para nossos agentes e demais
interessados.
Primeiramente, não é novidade na
literatura jurídica ou na jurisprudência o posicionamento do ministro Joaquim
Barbosa, que, entre outras questões, entendeu necessário o cumprimento de 1/6
da pena no Regime Semiaberto para que fosse autorizado o trabalho externo aos
condenados no processo em questão, sendo que, em nossa opinião, essa é uma
interpretação descontextualizada e equivocada do art. 37 da Lei de Execução
Penal, que não condiz com os objetivos legalmente declarados da pena e é, no
mínimo, constitucionalmente duvidosa.
Porém, se essa e outras decisões do
presidente do STF no "caso mensalão” têm causado espanto para determinados
setores da sociedade, certamente não surpreende às centenas de milhares de
presos, seus familiares ou os egressos do sistema penitenciário, que
desgraçadamente já se habituaram com condenações sem provas, decisões judiciais
que rasgam a letra da lei e interpretações jurídicas absurdas por parte dos
julgadores que, sem a sofisticação e empenho intelectual que vimos nesta Ação
Penal, sequer mascaram sua pesada carga ideológica.
Na Pastoral Carcerária, ao
observarmos esse moinho de gastar gente que é a Justiça Criminal, percebemos há
tempos que não há decisão isenta ou puramente técnica em nenhuma instância. Os
juízes decidem politicamente e buscam justificar com o Direito as suas próprias
convicções, geralmente tendo como alvo preferencial nossos jovens pretos e
pobres. Aliás, o fato de numa conjuntura muito específica uma "nova
classe” de pessoas ter sido vítima da truculência e aparente incoerência desse
sistema, apenas reforça seu caráter essencialmente político e claramente
seletivo.
Assim, obviamente, repudiamos o
conteúdo das referidas decisões do presidente do STF, assim como repudiamos
tantas outras decisões absurdas que diariamente são produzidas em nossos
fóruns. Porém, nos recusamos terminantemente a fazer coro com vozes que agora
se levantam para falar dos possíveis reflexos do "mensalão” para o
restante da população carcerária, como se a barbárie e o desmando já não fossem
a tônica da Justiça Criminal.
No nosso entender, enfrentamentos
individualizados apenas trarão respostas individualizadas e elitistas, deixando
à margem, como de costume, os presos e as presas que padecem em nossas
masmorras.
Não é possível denunciar
publicamente que determinado indivíduo está cumprindo pena em regime diverso
daquele em que foi condenado sem levar em conta os outros milhares que sofrem
com a mesma violação, ou desconsiderar a luta pela aprovação da Súmula
Vinculante nº 57, que se arrasta desde 2011 no STF e, se aprovada, poderia
garantir o direito ao regime aberto ou prisão albergue domiciliar para todos que
ilegalmente não conseguem usufruir o benefício do semiaberto em função da falta
de vagas.
Não é possível atacar
publicamente a ausência de tratamento médico especializado para determinado indivíduo
preso e, ao mesmo tempo, ignorar que as pessoas no sistema penitenciário são
privadas dos cuidados de saúde e higiene mais básicos, ainda convivendo com
surtos de sarna e mortes por tuberculose em pleno século XXI.
Não é possível enfrentar as restrições
ao trabalho externo para um determinado grupo de presos sem cerrar fileiras com
a massa de encarcerados, que sequer conseguirão um emprego ao cumprirem suas
penas, em boa parte graças à ausência de políticas públicas de inserção no
mercado de trabalho e à estigmatização social que persegue o egresso como uma
verdadeira marca de Caim.
Nesse mesmo sentido, nos
posicionamos sobre a suposta dispensa da revista vexatória para os familiares
dos condenados na Ação Penal 470. Essa é uma prática ilegal de revista, que expressa
repudiável violência sexual, e é um dos inúmeros aspectos cruéis do cárcere,
especialmente por ser uma espécie de "pena” que se estende dos presos para
seus familiares, e que não poucas vezes provoca o rompimento total do convívio
destes, já que muitos se recusam a passar por situação tão degradante,
inclusive a pedido dos próprios presos, e acabam por deixar de visitá-los.
Assim, obviamente, não defendemos
que os referidos familiares se sujeitem ao mesmo procedimento degradante que os
demais. Seja qual for o motivo da suposta dispensa, a Pastoral Carcerária
continuará defendendo que nenhuma pessoa passe por revistas vexatórias,
independentemente de sua cor, origem ou classe social.
Sobre o tema, a Pastoral
Carcerária já fez diversas denúncias e tem empreendido uma luta permanente pela
abolição desse perverso procedimento de tortura, sendo que recentemente tem
apoiado, fortemente, a aprovação do Projeto de Lei nº 480/2013, bem como
auxiliado na construção de campanhas com o mesmo fim.
Na luta contra o cárcere,
seletivo e cruel em sua raiz, não podemos praticar uma "solidariedade”
igualmente seletiva e, portanto, igualmente cruel, como se a injustiça doesse
mais em uns do que em outros.
Precisamos, sobretudo, abandonar
a ilusão da prisão como instrumento de "ressocialização” e entende-la como
ela é: uma ferramenta de exclusão, estigmatização e alienação social por
excelência.
Portanto, privar a pessoa presa
de trabalho, educação, tratamento médico e convívio familiar apenas reforça
essa característica "dessocializante” do cárcere. Não é por menos que o
encarceramento em massa, longe de suprimir o crime, é causa de aumento da
violência, sendo que os altos índices de reincidência atestam a falência dos
seus objetivos declarados e demonstram que, quanto mais se encarcera mais se
mantem a pessoa na marginalidade social.
Por fim, reafirmamos que a
Pastoral Carcerária está onde sempre esteve: ao lado de todos os presos e
presas, inclusive dos condenados na Ação Penal 470, e especialmente junto
daqueles mais fragilizados e violentados em seus direitos, lembrando sempre que
a prisão não é lugar de gente, é local de dor e morte, e fonte de sofrimento
físico e espiritual.
Brasil, 15 de maio de 2014
PASTORAL CARCERÁRIA NACIONAL
Fonte: http://site.adital.com.br
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