"Separação entre Estado e religião não é indiferença", diz Gilmar Mendes - Por Alessandro Cristo
O Estado ser laico não significa
indiferença ou separação absoluta em relação às religiões. Embora a
Constituição preveja que o Estado não adote uma religião oficial, também
prescreve diversas situações em que deve existir cooperação e até mesmo
integração.
Esse foi o teor do discurso do ministro Gilmar Mendes, do Supremo
Tribunal Federal, em palestra na Associação dos Advogados de São Paulo na noite
da segunda-feira (19/5).
O ministro veio a São Paulo
exclusivamente para o evento, que termina na terça (20/5), e falou a um
público de cerca de 200 pessoas no auditório da Aasp, formado por profissionais
da área jurídica e também por religiosos.
Segundo Mendes, a previsão constitucional
de laicidade não quer dizer apenas que o Estado não deve interferir na
liberdade das religiões, o que chamou de direito negativo, mas que deve agir
positivamente para garantir direitos.
Casos como os de colaboradores de cultos
que pedem reconhecimento de vínculo empregatício com as igrejas, ou de membros
expulsos que procuram a Justiça para serem novamente aceitos, são exemplos de
situações em que o Estado é chamado a agir positivamente.
“O constituinte não
quis só garantir a liberdade religiosa como um direito negativo, em que o
Estado cumpre esse dever com a mera abstenção, mas também com medidas de
caráter positivo para proteção das liturgias”, disse.
Conflitos dentro da comunidade
religiosa, de acordo com o ministro (foto), demandam a atuação do Estado. “É o
chamado direito horizontal, o direito fundamental nas relações privadas, com
efeitos sobre terceiros”, explicou.
Outro exemplo citado foi o de fiéis que
desejam se casar na igreja, mas são proibidos por já terem tido outros
casamentos antes, o que algumas liturgias vedam. “Em que medida, ao decidirmos
sobre esses casos, não estamos respeitando a autonomia das religiões?”, disse
Mendes, propondo a questão. “Temos de disciplinar a matéria no plano jurídico
de modo a sermos respeitosos e não desproporcionais nas restrições.”
Os debates a respeito do tema não
envolvem questões fáceis. Para além das objeções de consciência, há embates,
por exemplo, sobre o direito do fiel de se recusar a passar por um tratamento
médico que viole suas crenças, mesmo que o procedimento seja vital, e o
possível dever do Estado em fornecer essa via gratuitamente. Da parte do
médico, a questão é se o profissional pode ser responsabilizado criminalmente,
seja por ação ou omissão, por colocar a vida do fiel em risco ao atender seu
pedido.
Em relação às razões de
consciência, o ministro citou a dificuldade, no Brasil, que têm os religiosos
que se opõem a prestar o serviço militar obrigatório. Isso porque a
Constituição reconhece esse direito no artigo 5º, inciso VIII, mas delega às
Forças Armadas a função de propor uma solução. Como resultado, muitos são
obrigados a limpar os quartéis ou guardar as armas, o que pode ser encarado
como humilhação proposital.
“A formulação dessa disposição deveria ser mais
ampliada para que o serviço alternativo não fosse proposto pelas Forças
Armadas, mas que houvesse uma possibilidade de prestação civil”, disse.
Crucifixos e calendários
Ele também mostrou contrariedade em relação a ações civis públicas que pedem a retirada de crucifixos de repartições públicas. “É uma leitura da Constituição divorciada da cultura judaico-cristã que desenvolvemos. O símbolo não é só religioso, mas de uma cultura que precisa ser reconhecida.” E ironizou: “Essa discussão levada ao extremo pode nos obrigar a revogar o calendário gregoriano.”
A presença de crucifixos e outros
símbolos religiosos em locais públicos é dilema que ultrapassa as fronteiras
brasileiras. Gilmar Mendes contou que, na Baviera, na Alemanha, os crucifixos
são aceitos em determinados locais públicos, mas não em outros, como em escolas
públicas e locais de formação e ensino. Na mesma Alemanha, houve discussão
sobre a resistência de pacifistas em prestar o serviço militar obrigatório,
também por razões de consciência.
A laicidade do Estado no Brasil
foi sacramentada com a Constituição Federal de 1891, primeira a romper com os
alicerces do modelo anterior, em que o catolicismo era reconhecido como
religião oficial desde a Constituição de 1824, ainda no Império. A Constituição
de 1988 também balizou o assunto. Um dos dispositivos é o artigo 5º, inciso VI,
que fala do livre exercício de culto e da proteção aos locais onde eles
ocorrem, bem como de suas regras.
Mas a própria Constituição também
prevê a participação das religiões como elemento público importante. É o que
prevê o inciso VII do artigo 5º. Diz o texto ser assegurada a prestação de
assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva,
cujas normas de organização e procedimento devem ser disciplinadas por lei.
“Há
nesse exemplo uma ideia de cooperação entre a entidade civil estatal ou pública
não estatal e as de caráter religioso”, exemplificou o ministro, lembrando de
conclusões semelhantes de juristas portugueses de renome, como Jorge Miranda e
J.J. Canotilho. “Neutralidade não quer dizer indiferença.” E citou o artigo
226, parágrafos 1º e 2º, da Constituição, para mostrar que o casamento
religioso é aceito, no Brasil, com efeitos civis.
Mendes lembrou que o próprio
dispositivo constitucional que veda a adoção de uma religião pelo Estado,
artigo 19, inciso I, faz a ressalva quanto às colaborações de interesse
público. “A ênfase na laicidade gera uma interpretação da Constituição de que a
religião é uma inimiga do Estado, o que não tem fundamento”, disse.
Ele também mencionou o artigo
210, parágrafo 1º, da Constituição, que prevê o ensino religioso facultativo
nas escolas públicas. Nesse ponto, lembrou que a Lei de Diretrizes Básicas da
Educação, que regulamenta esse dispositivo constitucional, é alvo da Ação
Direta de Inconstitucionalidade 4.439 no Supremo Tribunal Federal, ajuizada pela
Procuradoria-Geral da República.
O diretor cultural da Aasp, Luís
Carlos Moro, encerrou a palestra lembrando que a associação, com o evento, quer
esclarecer os conceitos em torno do tema, e cumprimentou outros advogados
presentes, como o presidente da entidade, Sérgio Rosenthal; Rui Geraldo
Carmargo Vieira, professor da Universidade de São Paulo; e Ricardo Pereira de
Freitas Guimarães, que palestraram na terça.
Fonte: http://www.conjur.com.br
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