Muçulmanos, judeus e cristãos em paz: a idade das luzes – Por Jerônimo Teixeira
Uma viagem à Espanha dos séculos
8 a 15 mostra como a convivência pacífica entre cristãos, muçulmanos e judeus
criou uma sociedade brilhante em plena Europa medieval.
Enquanto Cristóvão Colombo partia
de Palos rumo a um continente que ele não imaginava encontrar, um número bem
maior de pessoas corria aos portos em busca de navios que os conduziriam a
destinos igualmente incertos. Por decreto real, os judeus da Espanha ou de
Sefarad, como eles a chamavam, estavam obrigados a optar entre a conversão à
“verdadeira fé’’ católica ou o exílio.
1492 está marcado em nossa imaginação
como o início de uma era, o ano da descoberta da América. Mas é também um
triste marco final. Isabel de Castela e Fernando de Aragão, os monarcas
espanhóis que comissionaram o capitão genovês para desbravar uma rota
alternativa até o Extremo Oriente, também enterraram para sempre uma das mais
ricas experiências de tolerância religiosa da história ocidental.
Essa época remota e fascinante
foi reconstituída com saboroso detalhismo por María Rosa Menocal em: The
Ornament of the World – How Muslims, Jews and Christians Created a Culture of
Tolerance in Medieval Spain (O ornamento do mundo – como muçulmanos, judeus e
cristãos criaram uma cultura de tolerância na Espanha medieval, ainda sem
tradução em português).
Menocal é professora de literatura espanhola e
portuguesa na Universidade de Yale, onde também dirige o Centro de Humanidades
Whitney. Sua obra anterior, mais especializada, já incluía títulos em que a
influência árabe sobre a cultura medieval européia era examinada.
The Ornament
of the World, porém, foi escrito, como a autora explica, com o intuito de
tornar acessível ao leigo o mundo que Menocal se acostumou a habitar em suas
pesquisas acadêmicas. A envolvente leitura, de fato, leva o leitor ao
conturbado, mas vibrante enclave conquistado pelos muçulmanos na Europa
Ocidental, durante a Idade Média.
O mundo de Menocal teve, sim,
episódios de obscurantismo religioso e intolerância fundamentalista, afinal,
não tem sido assim em toda a história humana? Mas o livro desmonta o velho
chavão da “idade das trevas”.
A Idade Média não se resume a
feudalismo, peste e cruzadas. A Espanha islâmica, chamada de al-Andalus em
árabe, daí o nome atual da região sul do país, Andaluzia, era um lugar
luminoso, a vanguarda cultural e científica da Europa. Sobretudo, era um espaço
raro (aliás, único) de convivência pacífica e de intercâmbio criativo entre as
três grandes fés monoteístas, islamismo, cristianismo e judaísmo.
Para caracterizar a Espanha
medieval, a autora utiliza uma bem-humorada definição do escritor americano F.
Scott Fitzgerald. O romancista de: O Grande Gatsby certa vez escreveu que “o
teste de uma inteligência de primeira linha é a habilidade de ter duas ideias
opostas em mente ao mesmo tempo”.
Al-Andalus teria sido, portanto, um “lugar de
primeira linha”. Conseguiu conjugar não só duas, mas várias ideias que até hoje
se mostram conflitantes. Um exemplo eloquente encontra-se na sincrética
combinação de estilos arquitetônicos do período.
Palácios construídos por
monarcas cristãos, como o Alcazar (da palavra árabe para palácio, al-qasr), de
Sevilha, erguido por Pedro, o Cruel, no século 14, revelavam a ostensiva
influência da arquitetura e da decoração muçulmanas, com seus arabescos e arcos
característicos.
Pela mesma época, uma sinagoga
construída em Toledo (e transformada no convento de Santa Maria La Blanca
depois da expulsão dos judeus) tinha seu interior decorado com frases em árabe,
algumas delas extraídas do Corão, o livro sagrado do islamismo.
Mas esses são exemplos tardios,
já próximos do ocaso de al-Andaluz. A aventura começou bem antes, no século 8.
Em 711, os primeiros muçulmanos atravessaram o estreito de Gibraltar e
penetraram com relativa facilidade no território então dominado pelos
visigodos, povo germânico famoso por ter saqueado Roma em 410. Teriam ido ainda
mais longe, se não fossem detidos pelos francos, ao norte dos Pirineus. Seu
domínio concentrou-se na península ibérica, que no entanto nunca chegou a ser
completamente islâmica, algumas regiões a noroeste permaneceram sob domínio
cristão.
Em 755, Abd al-Rahman I chega a
al-Andalus. Ele era o único sobrevivente da família Umayyad, que até aquela
data ocupava o califado, isto é, o reinado material e espiritual sobre todo o
mundo muçulmano.
Os Umayyads foram depostos e assassinados pela dinastia
emergente dos Abbasids, que em seguida moveram o califado mais para leste, de
Damasco para Bagdá. Abd al-Rahman estabeleceu-se em Córdoba, onde depôs o emir
(algo como governador de província) local. Formalmente, al-Andalus permaneceu
como o emirado mais ocidental do gigantesco império islâmico, ainda que de fato
a autoridade dos Abbasids não se fizesse ouvir por lá.
Ao tempo do Império Romano, a
província conhecida como Hispânia era uma das mais florescentes. Os visigodos,
porém, foram um fracasso administrativo, e o lugar vivia um período de total
aridez cultural e tecnológica quando os muçulmanos chegaram. A dinastia Umayyad
promoveu uma verdadeira mudança de ares. Os campos foram renovados com a
introdução de novas culturas e técnicas de irrigação.
O comércio com o Oriente
intensificou-se. E a arquitetura conheceu seu ápice transformador com a construção
da mesquita de Córdoba, onde os Umayyads reafirmaram sua tradição de
aproveitarem criativamente elementos das culturas locais.
A mesquita que Abd al-Rahman
mandou erguer em sua nova capital possuía um estilo que remetia nostalgicamente
à Síria, terra onde o príncipe exilado jamais tornaria a pisar, mas também
incorporava traços marcantes da arquitetura romana e gótica. Menocal lembra que
até mesmo os arcos em forma de ferradura que hoje vemos como prototipicamente
islâmicos são na verdade representativos da arquitetura da Espanha
pré-muçulmana.
O encontro de estilos
arquitetônicos refletia a convivência religiosa que se implantou na vida
cotidiana. O Corão traz disposições bastante generosas sobre os demais “Povos
do Livro”, isto é, as duas outras religiões monoteístas fundadas em obras
literárias, o judaísmo com sua Torá e o cristianismo com seu Evangelho.
Deus,
por meio de seu profeta Maomé, decretou respeito à liberdade religiosa de
judeus e cristãos que vivem em território islâmico. Já ao tempo em que
governavam na Síria, os Umayyads revelaram-se muito liberais na aplicação
desses ditames sagrados.
Especialmente para os judeus, que viviam em semiescravidão
sob o governo cristão dos visigodos, o domínio muçulmano inaugurou uma era de
liberdade inaudita. A comunidade judaica cresceu e prosperou em al-Andalus. Seu
prestígio pode ser aferido pelo fato de Abd al-Rahman III, que governou entre
912 e 961, ter nomeado um judeu como seu vizir (algo como um
primeiro-ministro).
Em 929, o mesmo Abd al-Rahman III
proclamou Córdoba como o califado, o centro universal da fé islâmica, em
resposta a um grupo xiita do norte da África que havia feito a mesma declaração
pouco tempo antes. Oficializava-se o que já era um fato: al-Andalus não devia
submissão à Bagdá dos Abbasids.
Ironicamente, este foi um dos gestos finais da
dinastia Umayyad. O sucessor de al-Rahman III morreu depois de 15 anos de
reinado sem deixar um sucessor em idade hábil.
O governo foi tomado por um
regente ambicioso e desastrado, que não conseguiu conservar a unidade de
al-Andalus frente aos ataques dos cristãos, ao norte, e das tribos
fundamentalistas berberes, ao sul. O marco final da era Umayyad pode ser fixado
na data simbólica de 1009, quando os berberes saquearam e destruíram Madinat
al-Zahra, o suntuoso palácio construído por al-Rahman III nas imediações de
Córdoba.
Para os fundamentalistas, aqueles
jardins magníficos, chafarizes, piscinas e estátuas em estilo romano,
representavam a impureza religiosa dos andaluzes.
O pretenso califado europeu
esfacela-se. Segue-se o período das chamadas taifas, cidades-estados que
disputavam entre si a oportunidade de reunificar al-Andalus. A história
nacionalista tradicional da Espanha enfatiza as disputas entre muçulmanos (ou
“mouros”, como viriam a ser chamados pejorativamente) e cristãos.
Destaca-se
nesses entreveros a figura de Rodrigo Diaz, conhecido como El Cid (corruptela
de al-sayyid, “senhor” ou “chefe”, em árabe), tido como primeiro herói da
reconquista católica da península. Menocal mostra que as coisas eram mais
complicadas. Nas confusas alianças de ocasião desse período, muitas vezes uma
taifa cristã se aliava a outra muçulmana para combater um inimigo comum. O
próprio Cid eventualmente lutava a serviço de muçulmanos.
Mas a vasta galeria de personagens
do livro privilegia figuras que encarnaram de forma integral o inquieto e
sofisticado espírito andaluz, como o judeu Samuel, o Nagib, vizir da taifa de
Granada. Além de ser um brilhante chefe militar, obtendo vitórias contra
Sevilha, Samuel renovou a poesia hebraica, ressuscitando para a literatura uma
língua que fazia muito tempo só era utilizada nas sinagogas.
A confusão
política, como se vê, não deu fim à efervescência cultural. A antiga capital
dos visigodos, Toledo, conquistada pelos cristãos em 1085, consagrou-se como
sede da mais importante escola de tradutores da Europa, vertendo para o latim,
língua da Igreja Católica, textos só encontrados em árabe, o idioma da cultura
e da ciência de então. Por essa época, tradutores de Bagdá já haviam vertido
toda a obra de Aristóteles para o árabe. Esses livros circulavam entre os
mestres-escola de al-Andalus, enquanto os maiores eruditos da Europa cristã só
conheciam uns poucos fragmentos em tradução latina.
Em 1086, diante do avanço cristão
de Alfonso VI, a taifa muçulmana de Sevilha pediu socorro ao regime
norte-africano dos Almoravids, que havia pouco tempo tomara o poder no
Marrocos. Os Almoravids derrotaram Alfonso VI e resolveram se estabelecer como
os donos do pedaço, impondo aos andaluzes uma ideologia fundamentalista
estranha às suas práticas tolerantes.
A situação piorou quando os Almoravids
foram destituídos por uma facção ainda mais fanática, os Almohads. No século
13, Fernando III expulsou os Almohads e fez de Sevilha a nova capital dos reis
de Castela. Em certo sentido, o monarca ainda estava filiado à tradição
pluralista que se gestou na al-Andalus dos Umayyads. Sua tumba, erguida na
mesquita (reconsagrada como Igreja Católica) de Sevilha, é um monumento
multicultural, com inscrições em castelhano, latim, hebreu e árabe.
Fernando III concedeu a taifa de
Granada a seus aliados muçulmanos. Limitado a um cantinho no sul da península,
o novo domínio islâmico era uma sombra tênue da velha al-Andalus, que nem de
longe voltou a respirar a atmosfera pluralista do passado: apenas muçulmanos
viviam em Granada, isolados dos judeus e cristãos, que ainda conviviam em
cidades como Toledo.
Em janeiro de 1492, no episódio culminante da
“reconquista”, o último e acuado soberano islâmico cederia a chave do belíssimo
palácio de Alhambra, sede do governo de Granada, a Isabel de Castela e Fernando
de Aragão. Os reis católicos assinaram um tratado em que se comprometiam a
preservar a liberdade religiosa dos muçulmanos. Não o cumpriram. O espírito da
época era outro e a Espanha firmava-se como uma nova nação, unificada sob uma
só igreja e falando uma só língua.
O último capítulo do livro é
dedicado a Dom Quixote, a pedra fundamental da arte do romance. Menocal mostra
como o clássico publicado por Miguel de Cervantes em 1605 retrata com sutileza
e sensibilidade o ocaso da rica cultura árabe em solo ibérico.
O final é melancólico, mas mesmo
assim a autora insiste na vitalidade intemporal da tradição de al-Andalus. No
epílogo, ela busca traços da memória daqueles séculos esfuziantes na obra
contemporânea de Salman Rushdie, escritor que foi perseguido pelo
fundamentalismo islâmico dos aiatolás do Irã.
Depois da leitura desse livro
arrebatador, fica o desconfortável sentimento de que a expressão “idade das
trevas’’ vale mesmo é para o mundo que vemos na CNN”.
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