Proteção da liberdade de expressão religiosa das empresas (?) – Por Thiago Sorrentino
Via Huffington Post, o Brasil
Post repercutiu a notícia: na semana de 30 de junho de 2014, a Suprema
Corte dos Estados Unidos (SCOTUS) fez pública sua decisão no caso Burwell
v. Hobby Lobby Stores, Inc. Por 5 votos favoráveis contra 4 desfavoráveis,
a Corte decidiu que empresas de capital fechado não estão obrigadas a prover
assistência à saúde contraceptiva às suas empregadas.
Para se desobrigarem, as empresas
devem demonstrar que a contracepção ofende crença religiosa sincera dos sócios. Segundo dizia meu avô Júlio, se
quiséssemos manter uma amizade, não deveríamos discutir política, futebol nem
religião com nossos amigos.
Em matéria religiosa, o consenso absoluto é
improvável e não há forma racional para conduzir qualquer indivíduo à "iluminação"
(daí o papel da fé). A improbabilidade do consenso é potencializada pelo dogma
da pretensão de universalidade mais ou menos comum a todas as religiões
organizadas, de modo a exacerbar certas sensibilidades.
Num Estado laico, o
dissenso religioso recebe a proteção da tolerância, que pode evoluir à
compreensão ou se transformar em adesão conforme a disposição de cada pessoa. Em Hobby Lobby, a SCOTUS
inova ao estender a proteção religiosa à pessoa jurídica dedicada à exploração
econômica lucrativa. Eis alguns pontos controversos do debate:
Empresas podem
"adorar"? A diferenciação entre sócios e empreendimento protege
e fomenta a atividade econômica (separação patrimonial), mas não há dúvida de
que a função sistemática da pessoa jurídica é obter receita para partilhá-la
com os empreendedores como lucro (numa das teorias dos sistemas, trata-se da
divisão da complexidade do mundo com o código binário "ter/não ter").
De acordo com a racionalidade do sistema econômico, não faria sentido salvaguardar
uma característica, a sensibilidade religiosa, que a pessoa jurídica não pode
ter (pelo acoplamento dos sistemas jurídico e econômico, a função da empresa é
"obter e distribuir licitamente lucros"). Assim, empresas podem
lucrar ou ter prejuízos ("ter/não ter"), mas elas não podem exercer
livre-arbítrio para cultuar nem idolatrar divindades.
Porém, de acordo com a opinião
majoritária da SCOTUS, para proteger a expressão religiosa dos sócios, pessoas
naturais, era necessário conferir a salvaguarda à pessoa jurídica. Se assim não
fosse, os sócios não poderiam organizar e administrar a pessoa jurídica em
absoluta concordância com os postulados religiosos individualmente adotados.
Ponderação entre as expectativas
legítimas das trabalhadoras do sexo feminino e o grau de limitação imposto ao
exercício da fé pela legislação. Em contraposição, os julgadores que
formaram o dissenso lembraram que as mulheres arcam com um custo
significativamente maior do que os homens para adquirir cuidados de saúde
preventivos.
Nesse sentido, eventual limitação da expressão religiosa dos
sócios empresariais seria por demais rarefeita, um aborrecimento menor, diante
da importância social de assegurar às mulheres trabalhadoras acesso expandido
aos meios contraceptivos.
Contradição
Curiosamente, a imprensa
local registra que a empresa investe em fundos compostos por ações de
farmacêuticas produtoras de métodos contraceptivos. Daí a indagação: o combate
à legislação que traz obrigações não deveria ser estendido às atividades que
trazem lucros, presente o mesmo critério determinante ("fomentar a
contracepção")?
Exclusão do trabalhador da
organização empresarial
Ao considerar a crença dos sócios como critério
determinante para formar a proteção aplicável à pessoa jurídica, a Corte alijou
os empregados e seus interesses do cálculo. De certa forma, o trabalhador
deixou de ser considerado parte importante da organização e da administração
empresarial.
Eficácia dos meios
Em
termos hipotéticos e de um modo geral, a orientação da SCOTUS não admite a
invocação de crença religiosa para imunizar o contribuinte contra tributos.
Contudo, conforme entendimento da administração do Estado, a inserção da empresa
como agente na política de saúde preventiva para contracepção teria melhores
resultados do que a intervenção estatal direta, custeada por tributos.
Se o
contribuinte não pode impedir o Estado de fornecer métodos contraceptivos, nem
de forçosamente custeá-los, qual o sentido de vetar um meio mais eficiente para
obter os mesmos resultados?
A história dos EUA contém outros
registros de oposição individual às escolhas políticas do Estado, motivada por
reservas de crenças humanísticas ou religiosas. Uma das mais extraordinárias
está descrita na obra: Desobediência Civil, em que Henry David Thoreau expõe
as razões que o levaram à prisão, por uma noite, devido à negativa de pagar um
tributo que custearia um Estado então defensor da escravidão humana e de
propósitos beligerantes (segundo entendia Thoreau).
Fonte: http://www.brasilpost.com.br
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