Deus é voto – Por Ricardo Mariano
Depois de quase um século sem se
fazer notar, a mistura de religião com política hoje é essencial para o debate
democrático.
Em sua reta final, a eleição de
2012 para a prefeitura de São Paulo se transformou em debate religioso.
A
discussão em torno da descriminalização do aborto e a distribuição de kits informativos
contra a homofobia, criados pelo Ministério da Educação, tornaram-se armas
eleitorais importantes e forçaram os candidatos José Serra e Fernando Haddad a
pisar em ovos para não se arriscarem a perder votos nem dos religiosos nem dos
progressistas.
Na disputa do primeiro turno, a candidatura do apresentador da
Rede Record Celso Russomanno, filiado ao Partido Republicano Brasileiro (PRB),
ambos, rede televisiva e partido, são da Igreja Universal do Reino de Deus, foi
criticada por instrumentalizar eleitoralmente a religião e por estar a serviço
de um conglomerado religioso e empresarial.
Até o final da década de 1970, os
pentecostais, de modo geral, eram vistos como apolíticos, sendo inclusive
acusados de alienados.
Já no contexto da redemocratização, em meados dos anos
1980, muitos dirigentes pentecostais estavam dispostos a participar da redação
da nova Constituição e adotaram o lema “irmão vota em irmão”, lançando e
apoiando candidaturas de religiosos.
Alegavam que era preciso eleger seus
próprios representantes parlamentares para defender sua liberdade religiosa,
evangelizar a política, proteger a família, a moral cristã e os interesses de
suas Igrejas, assim como para combater propostas antibíblicas e moralmente
condenáveis, como a união civil de homossexuais, a descriminalização do aborto
e do consumo de drogas, entre outras.
A mobilização surtiu efeito: os
pentecostais saltaram de dois deputados federais em 1982 para 18 em 1986, sendo
13 da Assembleia de Deus. Feito considerável, dado que só cinco deputados
federais tinham sido eleitos por eles entre 1910 e 1982.
Nesse período, a
representação parlamentar dos evangélicos no Congresso Nacional, iniciada com a
eleição do metodista Guaracy Silveira para a Assembleia Constituinte de 1934,
foi dominada por presbiterianos (36 deputados), batistas (25), luteranos (15),
congregacionais (9) e metodistas (9).
A partir de 1986, os pentecostais
assumiram o protagonismo político entre os evangélicos. As outras denominações
protestantes, somadas, elegeram 14 deputados naquele ano.
Nas eleições posteriores, as
diversas igrejas evangélicas alcançaram 23 deputados federais em 1990, 30 em
1994, 49 em 1998, 59 em 2002, 48 em 2006 e 73 em 2010.
A redução do número de
representantes nos pleitos de 1990 e 2006 decorreu de escândalos envolvendo
corrupção e troca de favores que atingiram principalmente deputados da
Assembleia de Deus e da Igreja Universal do Reino de Deus. Mas, entre 1986 e 2010, o número de
evangélicos na Câmara Federal mais que dobrou, acompanhando a vertiginosa
expansão demográfica dos evangélicos, liderada pelos pentecostais.
Em 2005, Edir Macedo, fundador da
Universal do Reino de Deus, criou um partido político, o PRB, pelo qual
reelegeu em 2010 o senador Marcelo Crivella, bispo licenciado da Universal e
seu sobrinho, desde março deste ano titular do Ministério da Pesca.
Cerca de metade dos deputados
pentecostais é composta de pastores, cantores gospel e parentes de
líderes de igrejas, tele-evangelistas e donos de emissoras de rádio e TV. Ainda
assim, para serem eleitos, esses candidatos dependem fortemente do apoio
eleitoral de pastores e líderes denominacionais. Essa dependência reforça o
caráter corporativista e moralista de seus mandatos e seu compromisso de
atuarem como despachantes de igreja.
A maioria dos parlamentares
evangélicos no Congresso Nacional, 30 dos quais eleitos pelo Partido Social
Cristão (PSC), pelo PRB e pelo Partido da República (PR), é filiada à Frente
Parlamentar Evangélica (FPE), criada em 2003.
A FPE apresenta grande
heterogeneidade partidária e denominacional e não tem poder para uniformizar a
atuação parlamentar de seus membros. Por isso, sua coesão ocorre apenas em
casos que envolvem a defesa da moral cristã tradicional e de interesses
materiais e institucionais de suas Igrejas.
Em defesa da moral e dos bons
costumes, a FPE une forças com deputados ligados a grupos católicos
conservadores para lutar, por exemplo, contra o Projeto de Lei nº 122/2006, que
criminaliza a homofobia, por considerá-lo um atentado contra a liberdade
religiosa e de expressão.
A Frente também se opõe radicalmente à descriminalização
do uso privado de drogas, à legalização da eutanásia e de casas de prostituição
e à interrupção da gravidez até a 12ª semana mediante atestado de médico ou
psicólogo.
Hoje, o ativismo eleitoral e
partidário dos pentecostais, a despeito de suas inclinações sectárias e
fundamentalistas e de seu caráter moralista, é um dado da democracia e da
cultura política brasileira. Viva e despudoradamente, essa prática tem sido
estimulada por candidatos e partidos de todos os quadrantes ideológicos em
busca de votos.
Apesar disso, muitos crentes se opõem individualmente à
manipulação eleitoral dos fiéis e à mistura entre religião e política; não se
deixam transformar automaticamente em peças de currais eleitorais cegamente
obedientes à orientação pastoral.
A Congregação Cristã no Brasil e a Igreja
Deus é Amor, por exemplo, abrigam 12% dos pentecostais e permanecem apolíticas.
Denominações protestantes tradicionais, em geral, também não lançam nem apoiam
candidatos oficialmente. Mas esta não é a postura da maioria dos pentecostais e
neopentecostais, justamente as vertentes evangélicas que mais crescem no país.
Ricardo Mariano é professor da PUC
do Rio Grande do Sul e autor de Neopentecostais: Sociologia do novo
pentecostalismo no Brasil (Loyola, 1999).
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