O desterro da teologia – Por Frei Bento Domingues
Agradecendo a
hospitalidade do Público, retomo estas crónicas, de registo teológico, marcadas
pelas vicissitudes do Evangelho no tempo, nos labirintos da história.
Calcula-se que os seres humanos, como animais diferentes, dotados de
autoconsciência, de capacidade ética e estética, de linguagem simbólica e
abstracta, surgiram muito tarde, num universo com 13 biliões de anos.
Ao contrário dos outros animais,
manifestaram-se não apenas com espírito crítico, vigilante, mas como seres
religiosos, rebeldes contra o destino, pouco adaptados à morte e preocupados
com a sorte dos mortos. A religião surge como a suprema rebeldia contra o
destino. A consciência do limite é uma fonte de boas ou conflituosas relações
com a natureza, com os outros e com o fundo misterioso de tudo, com o
Transcendente.
Ao falar de registo teológico é
para dizer que não tenho a fé de um ateu, nem a resignação de um agnóstico,
atitudes altamente respeitáveis. Sei que a palavra Deus precisa de ser
continuamente lavada e resgatada dos seus repetidos usos ridículos e
criminosos, tanto no passado como no presente, mas não renuncio a ela. Na nossa
cultura, o melhor e o pior é sugerido por essa palavra e por nenhuma outra com
a mesma eficácia.
O grande filósofo do uso moderno
da razão, I. Kant (1724 -1804), depois da crítica das chamadas “provas da
existência de Deus”, reconheceu que a razão não é tudo no conhecimento humano.
Esta tem a estranha particularidade de suscitar questões que não pode resolver.
No final da Crítica da Razão Pura deixou-nos este testemunho:
“A fé num
Deus e num outro mundo está tão entrelaçada com o meu carácter moral, que se
corro pouco perigo de perder este último, tão-pouco receio que a primeira me
possa ser alguma vez ser arrancada”.
Tenho amigos que lamentam a minha
teimosia em me manter fiel ao registo teológico, mesmo depois de já ter feito
repetidas apologias da chamada teologia negativa que só consente
afirmações acompanhadas de negações radicais, assim como da ideia de Tomás de
Aquino: Deus só é “conhecido como desconhecido”.
Eu deveria escolher o registo
da espiritualidade e da mística, menos contaminado pelas juras de ortodoxia à
doutrina católica oficial e aos seus dogmas.
Não vou por aí. É verdade que
nunca aceitei situar a minha modesta prática teológica sob o manto da teologia
dogmática ou sistemática. Nunca me esqueci da confissão de Tomás de Aquino, místico, poeta, biblista, filósofo e teólogo, no fim da sua vida breve e
extraordinariamente fecunda: “parece-me palha tudo que escrevi”.
Não me sinto mal no caminho da
“teologia do fragmento”, do provisório. Sou alérgico às declarações
classificadas como definitivas, irreformáveis de certo estilo de magistério
eclesiástico.
Em sentido contrário, não sou menos alérgico ao relativismo, ao
vale tudo! Somos filhos do tempo, na escola de todas as épocas, lugares e
culturas.
O Verbo fez-se e continua a fazer-se “carne”, fragilidade humana no
tecido dos múltiplos e contraditórios sinais dos tempos antigos e no mundo
contemporâneo.
É talvez por isso que nunca me
resignei ao “desterro da teologia”. Esta consiste no esforço de pensar e
questionar as representações fé e da moral, para não se cair na idolatria das
suas fórmulas e práticas. A teologia deve ajudar a criar, no espaço eclesial,
condições para que a palavra seja reconhecida a todos e não confiscada por
nenhuma hierarquia. Todos somos Igreja.
Se a teologia foi “desterrada” da
cultura moderna é por ter sido considerada inimiga da razão, da filosofia e de
todos os modos de criatividade humana. Nas Igrejas, ao ser instrumentalizada
pelo poder eclesiástico, perdeu o carácter de instância da liberdade da fé e
das suas expressões mais genuínas. O autoritarismo desvirtuou a sua função na
Igreja e tornou-a incapaz de dialogar com a sociedade, de a fecundar e ser fecundada
por ela.
Ch. Duquoc descreveu e discutiu
as condições para que a teologia possa enfrentar o desafio da sua sobrevivência
na cultura contemporânea [1].
O cristianismo não se reduz
a uma moral social ou política. Morrerá ao resignar-se a ser unicamente uma
forma de validar religiosamente os princípios que a grande maioria aprova e
pouco pratica.
Desmarcar-se, sem desprezar, profetizar sem condenar, definir um
território original sem se fechar ao intercâmbio democrático, manter-se próximo
e respeitador das vítimas, muitas vezes trágicas, do sofrimento e da injustiça,
abster-se de formular uma cosmovisão global ou uma explicação totalitária,
assinalar a insatisfação dos desejos e do vazio no coração da vida pessoal e da
história, não como factos negativos, mas como incitamentos à criação, podem ser
tarefas da teologia.
O teólogo tem de abandonar a mania dos monopólios. É uma voz entre
outras. Não deve renunciar à sua originalidade nem ao seu desejo de não
atraiçoar a revelação bíblica. Espera que o desterro da teologia não o encerre
numa solidão estéril.
Estas crónicas têm vivido sempre no espaço laico,
com a liberdade que o Público lhes oferece e com a liberdade cristã a que não
renuncio.
[1] Christian Duquoc, O.P., La théologie en exile. Le défi
de sa survie dans la culture contermporaine. Bayar, Paris, 2006.
Fonte: http://www.publico.pt
Comentários