Projeto põe pesquisa da filosofia grega clássica em sintonia com padrão internacional - Por José Tadeu Arantes
Um estudo em profundidade da
filosofia grega clássica, centrado em seus dois principais protagonistas,
Platão (428/427 a.C. – 348/347 a.C.) e Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.), está
em curso na Universidade de São Paulo (USP).
Trata-se do Projeto Temático: “Filosofia
grega clássica: Platão, Aristóteles e sua influência na Antiguidade”,
apoiado pela FAPESP.
Por paradoxal que pareça, esse
estudo dos antigos constitui, de certa maneira, uma novidade auspiciosa, pois
há algumas décadas a filosofia grega clássica encontrava-se praticamente
ausente de muitas das universidades brasileiras, como se a atividade filosófica
tivesse se iniciado apenas no século XVII, com o francês René Descartes (1596 –
1650).
“Nosso projeto foi concebido de
forma bastante ampla, de modo a abrigar diversos interesses dos pesquisadores
que trabalham sobre Platão e Aristóteles, propiciando uma interação entre
professores do Departamento de Filosofia e do Departamento de Grego da USP”,
disse o coordenador do projeto Marco Antônio de Ávila Zingano, professor de
Filosofia Antiga da USP, à Agência FAPESP.
A menção aos professores de grego
é importante, porque um dos requisitos para a participação no grupo, que reúne
cerca de 15 pesquisadores, é poder lidar com os textos de Platão e Aristóteles
na língua original, o grego antigo, ou, no caso da filosofia romana, o latim
clássico.
“O seminário central, no qual
convergem todos os interesses, consiste na leitura e interpretação dos Tópicos,
de Aristóteles”, afirmou Zingano. Trata-se de uma obra escrita no período final
de seus 20 anos de discipulado na Academia de Platão, que se encerraram em 348
a.C., pouco depois da morte do mestre.
“Nos Tópicos, Aristóteles
estabeleceu uma série de regras para os procedimentos dialéticos, sobre como
discutir uma tese com base em opiniões reputadas. Por isso, tal obra é
fundamental para todos os que se dedicam a um estudo em profundidade do
pensamento grego antigo. Os Tópicos funcionam como uma espécie de
chave de leitura para muitos outros textos e debates”, disse o coordenador do
Temático.
A rotina do grupo consiste em
dois encontros mensais para discutir os Tópicos. E em seminários especiais
para tratar de temas específicos das filosofias de Platão ou de Aristóteles,
ligados à metafísica ou à teoria da ação. “Além disso, a cada semestre,
recebemos três professores de fora, que dão seminários intensivos”, disse
Zingano.
Intercâmbios
A ideia básica é a de que
filosofia se faz com a leitura dos textos originais nas línguas originais e com
intenso intercâmbio entre pesquisadores de diferentes instituições, do país e
do exterior. Os resultados palpáveis são a produção e a publicação de livros ou
artigos, com traduções dos textos ou discussão de temas relevantes.
“Um dos intercâmbios a destacar é
o que mantemos, atualmente, com a Universidade de Princeton, nos Estados
Unidos. Reunimo-nos, alternadamente em São Paulo ou em Princeton, durante três
dias no mês de janeiro. Para essas reuniões, escolhemos antecipadamente certos
textos e os distribuímos para todos os doutorandos, de modo que cada texto seja
apresentado e discutido por uma dupla formada por um aluno da USP e outro de Princeton.
Eles preparam a exposição por e-mail, fazem a apresentação conjuntamente e,
depois, todos os participantes debatem”, relatou o coordenador.
Entre os vários subtemas
abrigados pelo projeto, dois são especialmente instigantes para quem se
interessa por filosofia, mesmo sem ser especialista.
Um é a relação dos chamados
neoplatônicos, Plotino (205 d.C. – 270 d.C.) e seguidores, com o pensamento
original de Platão. Em que medida os neoplatônicos foram, como insistiam em
afirmar, fiéis depositários e exegetas da filosofia de Platão, em que medida
eles foram inovadores radicais?
Outro subtema é a própria relação
de Aristóteles com Platão. As diferenças, tantas vezes apontadas, entre o
discípulo e o mestre fariam do aristotelismo um pensamento totalmente
divergente da matriz platônica, ou apenas uma das muitas possibilidades de
desenvolvimento do platonismo?
Monismo versus dualismo
Quanto aos neoplatônicos, um
pesquisador do grupo que se dedica ao seu estudo, especialmente no que diz
respeito ao pensamento de Plotino, é Mauricio Pagotto Marsola, professor de
História da Filosofia Antiga da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Seu trabalho de doutorado,
concluído em 2005 com Bolsa da FAPESP, examinou a exegese plotiniana de
uma passagem do diálogo A República, de Platão. Mais recentemente, ele
recebeu Bolsa de Pesquisa no Exterior para participar do projeto de
reedição dos escritos de Plotino.
“Investiguei o modo como Plotino
lia Platão. E isso me conduziu a um tema central do pensamento plotiniano, que
trata do Uno (Hen, em grego), o Primeiro Princípio, inefável, inapreensível
pelo intelecto humano, que engendra toda a realidade”, disse Marsola.
Plotino se autodeclarava apenas
um exegeta de Platão. Sua proposta era esclarecer as obscuridades e
contradições que os textos de Platão eventualmente apresentavam.
“Porém, nele, a exegese era uma
estratégia metodológica para pensar questões filosóficas”, explicou Marsola.
“Sua obra, as Enéadas, lidou com questões suscitadas diretamente pelos diálogos
de Platão; questões que vieram dos platônicos imediatamente posteriores a
Platão; questões que vieram dos platônicos imediatamente anteriores a Plotino;
e questões que vieram do aristotelismo ou do estoicismo.”
Uma influência fundamental na
composição do pensamento de Plotino veio de Amônio, seu mestre em Alexandria.
Amônio foi, talvez, o personagem mais obscuro da história da filosofia. Nada
publicou e pediu a seus discípulos que não divulgassem os ensinamentos que lhes
transmitiu. As informações biográficas a seu respeito são mínimas e sujeitas a
controvérsias.
“Porém, Porfírio, discípulo de
Plotino, afirmou que Plotino lia os textos de Platão segundo o Nous (intelecto)
de Amônio. Isto é, lia os textos conforme a exegese já praticada por Amônio”,
comentou Marsola.
“Ao fazer essa exegese de Platão
segundo o espírito de Amônio, Plotino construiu uma filosofia própria,
extremamente original. Ele buscou compreender a realidade como um todo
unitário, articulado e coerente, que decorre inteiramente do Primeiro Princípio”,
disse.
“Em seu sistema, há dois escalões
intermediários entre o Primeiro Princípio (Uno) e o mundo sensível: o Nous (Intelecto)
e aPsyche (Alma). Porém, tudo é entendido como um escoamento do Primeiro
Princípio. O próprio Plotino usou a metáfora da fonte para ilustrar esse
escoamento da realidade toda a partir de um princípio único. Um dos lemas do
neoplatonismo é Hen to Pan (O Uno é o Todo)”, disse Marsola.
O pesquisador explicou que
Plotino construiu seu sistema em contraposição à visão dualista dos gnósticos
de seu tempo, com os quais polemizou. O gnosticismo era uma corrente
místico-filosófica heterogênea, que procurava sintetizar muitas influências e
apresentava várias divisões e subdivisões, expressando-se, com diferentes
roupagens, nos contextos pagão, judaico e cristão.
“Para uma certa versão do
gnosticismo, a realidade era regida por dois princípios: um bom, que teria
produzido o mundo inteligível; e outro mau, que teria produzido o mundo
sensível”, afirmou Marsola.
“Então, o mundo sensível era associado
ao mal. E isso conferia a essa versão do gnosticismo uma perspectiva escapista,
de rejeição da vida material. Plotino contestou essa visão e reafirmou a
harmonia da realidade, entendendo o mundo sensível como um reflexo do mundo
inteligível, ambos procedendo do Uno”, disse.
O Aristóteles jovem e o
Aristóteles maduro
Sobre a trajetória do pensamento
aristotélico em sua relação com o platonismo, Zingano, especialista em
Aristóteles, destaca três grandes leituras da obra desse filósofo.
“Uma, que demonstra menor
interesse nas mudanças ocorridas na obra de Aristóteles e busca antes enfatizar
a unidade dos textos, ou bem limitando essa unidade a alguns textos ou bem
retornando à ideia de um grande e coerente sistema aristotélico; outra,
inaugurada pelo filólogo alemão Werner Jaeger (1888 – 1961), que consiste em
ver um Aristóteles que lentamente se distanciou de Platão, a ponto de, no final
de sua carreira, ter abandonado a metafísica em proveito da pesquisa
científica; e uma terceira, que eu, pessoalmente, considero a mais
interessante, proposta, nos anos 1950, pelo filósofo galês Gwilym Ellis Lane
Owen (1922 – 1982)”, disse.
Segundo Zingano, Owen percebeu na
trajetória de Aristóteles um momento inicial de afastamento e outro posterior
de reaproximação em relação à matriz platônica.
“Ele vislumbrou um Aristóteles
jovem, rebelde, como qualquer adolescente é, que negava a todo custo Platão,
mas que, depois, amadureceu e, pouco a pouco, recuperou temas platônicos, em
outra chave conceitual”, descreveu o pesquisador.
“Assim, nas Categorias, um
texto da juventude, Aristóteles sustenta, contra Platão, uma análise do ser
limitada às substâncias sensíveis, sem a perspectiva de uma doutrina geral do
ser. Anos depois, porém, na Metafísica, volta a afirmar a possibilidade de
uma tal ciência. Aristóteles afirma tal possibilidade com base em noções que já
estão completamente fora do domínio platônico. Contudo, o fato de afirmá-la
mostra um retorno a temas do platonismo”, disse.
O Projeto Temático: “Platão,
Aristóteles e sua influência na Antiguidade” deve se estender até o fim de maio
de 2015.
O grupo de pesquisa publica, de
modo constante, artigos, capítulos de livros e livros sobre temas de filosofia
antiga. Recentemente, Zingano editou, ao lado de Pierre Destrée, pesquisador
do Fonds de la Recherche Scientifique (FNRS) e professor da Université
Catholique de Louvain, na Bélgica, e de Ricardo Salles, pesquisador do
Instituto de Investigaciones Filosóficas da Universidad Nacional Autónoma de
México, o livro: What is up to us? Studies on Agency and Responsibility in
Ancient Philosophy, reunindo artigos de diversos estudiosos. A publicação foi
lançada este ano pela editora Academia Verlag, especializada em filosofia.
Os próximos livros a serem
lançados por integrantes do projeto temático são Protágoras, de Platão:
tradução, introdução e comentário, de Daniel Lopes, professor de língua e
literatura grega na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH)
da USP, previsto para 2015 pela Editora Perspectiva; e Theoria – studies
on the status and meaning of contemplation in Aristotle’s Ethics, editado por
Zingano e Destrée, pela Peeters Publishers, editora sediada na Bélgica, com
lançamento previsto para o fim deste ano.
Fonte: http://agencia.fapesp.br
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