Estado laico está só no papel
Alguns brasileiros têm a certeza
de que gozamos de um governo no qual não há qualquer interferência religiosa, e
dormem tranquilos resguardados pelo artigo 19º da Constituição, que diz que é
proibido aos governantes “estabelecer cultos religiosos ou igrejas,
subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus
representantes relações de dependência ou aliança”.
Ainda assim, na reta final ante o
primeiro turno das eleições presidenciais, muitas questões ainda deixam o povo
brasileiro hesitante. Vamos eleger um presidente religioso? Como fica a
laicidade do Estado, nesse caso?
Devemos esperar menos de um candidato que fala
abertamente sobre suas crenças? Como governaria um presidente ateu? E um
evangélico? Nos últimos anos, com a ascensão de grupos políticos cunhados em
igrejas, a relação Estado–religião tem recebido especial atenção.
Os primeiros equívocos começam
com o próprio conceito do que é um Estado laico, conforme o que afirma a
Constituição. Seu artigo 5º diz que a liberdade de consciência é inviolável e
que ninguém será privado de direitos por sua crença religiosa.
Dessa forma, um
Estado laico (o nosso, inclusive), seria um governo onde há o respeito por
todas as práticas religiosas, desde que estas não atentem contra a ordem pública.
Da mesma forma que as autoridades não apoiariam somente uma religião, não
haveria impedimento ou barreiras para nenhuma outra forma de expressão
espiritual.
Por outro lado, a legislação
também afirma que é assegurada a prestação de assistência religiosa nas
entidades civis e militares de internação coletiva.
Em outras palavras, isso
significa que, apesar de sua laicidade, há uma valorização da religião do
Estado brasileiro, apesar de não haver uma preferência expressa por um tipo
religioso específico. Isso quer dizer que, no modelo de laicidade adotado, a
relação com a religião permanece, ainda que por debaixo dos panos.
“A laicidade do Estado é um
processo, uma construção social e política”, afirma a professora Lídice Meyer,
que ministra Ciências da Religião na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
“Historicamente, a Constituição
de 1891 foi a primeira a oficializar a separação entre o Estado e a Igreja
Católica, tornando o Brasil um país laico. Todas as demais constituições que se
seguiram mantiveram a neutralidade religiosa. Neutralidade, esta, porém, vista
apenas no papel”, explica.
De forma geral, podemos observar
que em diversas situações na democracia brasileira houve influência direta da
Igreja Católica nas questões governamentais, através de concordatas com o
Estado do Vaticano.
A dificuldade no emplacamento de leis pró-direitos LGBT, ou
na legalização do aborto, bem como o descaso com crenças tidas como profanas,
são apenas exemplos da influência cristã na maneira de governar.
Mais
recentemente, devido à dificuldade encontrada pelo Estado em suprir
necessidades na área das políticas públicas, o governo estabeleceu parcerias
com igrejas para colaboração em programas de distribuição de leite, cestas
básicas e combate às drogas.
“Vê-se, portanto, que a tão
pregada laicidade do Estado Brasileiro está ainda por se constituir. Não basta
a separação entre a igreja e o Estado apenas”, pontua a professora.
Ainda dentro desse debate, surge
outro tema bastante discutido em meio ao clima eleitoral: o ensino religioso
deve ser uma disciplina obrigatória no currículo escolar público? Que tipo de
consequências essa decisão acarretaria na prática?
“Sem dúvida, não há problema
algum em levar ao ensino público a discussão sobre as relações entre igreja e
Estado, religião e política”, afirma o professor Ricardo Mariano, doutor em
Sociologia da Religião pela USP.
A questão que permanece em aberto, porém, é se
a escola pública deve se transformar num espaço de formação e pregação
político-ideológica.
“Tanto a forma de laicidade que
pretende reduzir o espaço da religião na esfera pública, quanto a outra forma
que pretende estender sua influência a todos os âmbitos da política e do
Estado, todas elas, no fim, são normativas, políticas, ideológicas”, pontua.
Em outras palavras, é preciso
pensar se o espaço escolar é o ambiente mais adequado para abrir este tipo de
debate, uma vez que sua diretoria acadêmica e seus mestres sempre estarão
sujeitos às suas próprias visões político-ideológicas, podendo passar esses
conceitos de forma enviesada aos estudantes.
“A laicidade do Estado não é algo dado de uma
vez por todas; está em debate, sob pressão e julgamento de um sem-número de
agentes laicos e religiosos interessados em demarcá-la e configurá-la conforme
seus valores e interesses.”
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