Onde começa (e acaba) a liberdade religiosa? – Por Helena Matos
O crucifixo numa parede é um
símbolo religioso ou também cultural? E pode um organismo público montar um
presépio na sua sede? Quais os limites ao proselitismo dos crentes ou à
militância do laicismo?
No dia em que esta entrevista foi
gravada as iluminações de Natal abrilhantavam várias ruas de Lisboa mas nessas
iluminações era praticamente impossível encontrar um único símbolo que remeta
para a origem religiosa do Natal.
O que nos leva ao paradoxo de termos
iluminações de Natal sem nada que lembre o que é o Natal e porque o celebramos.
E, nem de propósito, esta entrevista teve lugar quando em França, país de que,
não por acaso, se fala recorrentemente ao longo desta entrevista, estalava
uma polémica em torno de um presépio que um organismo público, o departamento
do Conselho Geral da Vendeia, tomou a decisão de instalar na sua sede.
Os
juízes foram sensíveis a uma queixa apresentada em tribunal por uma associação
denominada de Livre Pensamento e determinaram que “o presépio é um símbolo
religioso” incompatível com “o princípio da neutralidade do serviço público”.
Entre o proselitismo e o
fundamentalismo de alguns crentes e a militância do laicismo, qual é o espaço
da liberdade? De tudo isto falámos com Jorge Bacelar Gouveia, actualmente
presidente do IDP, Instituto de Direito Público e coordenador do Mestrado em
Direito e Segurança na Universidade Nova de Lisboa.
A sua experiência como
Membro da Comissão da Liberdade Religiosa e o enquadramento legal que tem dado
às questões suscitadas pela relação entre o Estado e a Religião, escreveu: Religion
and Law in Portugal e também Direito e Religião e Sociedade no Estado
Constitucional, levaram a que fosse o convidado desta conversa sobre liberdade
religiosa.
Durante muito tempo as questões
da liberdade religiosa restringiram-se em Portugal à objecção de consciência
levantada pelas Testemunhas de Jeová às transfusões de sangue e também ao
cumprimento do serviço militar obrigatório.
A recente polémica em torno de uma
procuradora do ministério Público que invocou a sua fé adventista para não
trabalhar ao sábado deu-nos conta de como as questões de natureza religiosa
estão a colocar problemas no mundo laboral.
Jorge Bacelar Gouveia defende a
decisão do Tribunal Constitucional que, contrariando as anteriores decisões do
Conselho Superior do Ministério Público e do Supremo Tribunal Administrativo,
reconheceu à procuradora o direito de não trabalhar aos sábados:
“Acho que fez
bem [o Tribunal Constitucional]”, declara Jorge Bacelar Gouveia. Porquê?
“Havendo uma pluralidade de trabalhadores como se supõe que não são todos
Adventistas do Sétimo Dia é crível que o problema se possa resolver acomodando
o direito dos adventistas a não trabalhar ao sábado.”
No ar ficam contudo dúvidas: e se
a empresa tiver não tiver um número de trabalhadores que permita fazer roulement?
Ou, mais perturbante ainda, para acautelar o respeito pelos dias feriados de
cada religião vamos acabar a rever a interpretação do artigo 41 de Constituição
que estipula no seu ponto 3:
“Ninguém pode ser perguntado por qualquer autoridade
acerca das suas convicções ou prática religiosa, salvo para recolha de dados
estatísticos não individualmente identificáveis, nem ser prejudicado por se
recusar a responder”?
Os direitos dos pais a decidir
sobre os filhos em matéria religiosa levou esta entrevista inevitavelmente ao
problema da recusa das transfusões de sangue por parte das Testemunhas de Jeová,
“Se a pessoa for maior tem o direito de optar entre não querer viver e ser
feliz com a sua religião. Não devemos interferir. Mas quando se trata de uma
criança julgo que não é legítimo que os pais possam substituir os filhos nessa
decisão”, defende Bacelar Gouveia.
Mas como nunca nada é simples nesta
matéria temos ainda o problema dos adolescentes: aos 14 anos tem-se ou não uma
vontade suficientemente amadurecida para rejeitar em nome da fé um tratamento
que pode salvar a vida?
Os direitos em matéria religiosa
colocaram-nos também a outras questões:
devem ou não as crianças a cargo da
Santa Casa da Misericórdia de Lisboa ser baptizadas? Uma escola pública pode ou
não celebrar uma missa católica nas suas instalações? O crucifixo numa parede é
um símbolo religioso ou também cultural?
E o direito à objecção de consciência
no caso dos médicos, direito cada vez mais invocado pelos jovens profissionais
de saúde em países como a França, pode ou não comprometer o acesso à
interrupção voluntária da gravidez por parte das mulheres?
E de polémica em polémica
chegámos ao conteúdo das aulas de educação religiosa nas escolas públicas, à
bandeira portuguesa sem esquecer a conversão ao catolicismo de Tony Blair e mudança
de símbolo do Real Madrid nos países árabes.
Mas apesar de tantas
controvérsias para Jorge Bacelar Gouveia a principal questão não é hoje tanto o
conflito entre religiões mas sim entre crentes e não crentes:
“Liberdade
religiosa não significa o apagamento ou desaparecimento das manifestações
religiosas no espaço público. Porque isso seria no fundo obrigar a comunidade a
converter-se a uma religião que é a não religião.”
Para o fim ficou uma constatação:
“Estranhamos sempre que haja outros países que insistem em não reconhecer essa
liberdade religiosa como acontece com alguns países muçulmanos em que não há
igrejas. As pessoas não podem ir à missa.”
E um aviso: “Tem de haver um
patamar comum e do qual o Ocidente não pode abdicar.”
Fonte: http://observador.pt
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