“Dizer que estes fanáticos nada têm a ver com o Islão é o cúmulo do politicamente correcto e é contraproducente” – Por Ana Gerschenfeld
O Corão está na base do
terrorismo jihadista, como dizem alguns?
Ou será que os sangrentos atentados
perpetrados por jihadistas nada têm a ver com o Islão, como afirmam outros?
Quem são os “muçulmanos moderados”?
O que é a “comunidade muçulmana” de que
tanto se tem falado nas últimas semanas?
Estes clichés têm gerado muita
confusão na opinião pública ocidental. Mas há cientistas que tentam perceber as
raízes profundas do terrorismo para além das ideologias subjacentes.
Scott Atran
(62 anos), antropólogo e psicólogo do Instituto Jean Nicod, em Paris, e da
Universidade do Michigan (EUA), quer desvendar as raízes do terrorismo
recorrendo à metodologia científica.
Tem entrevistado e realizado experiências
de psicologia envolvendo colonos israelitas, refugiados palestinianos, líderes
do Hamas e grupos islâmicos radicais do Paquistão e da Indonésia, tendo
colocado muitas vezes a sua vida em perigo em nome da ciência.
O seu último
livro: Talking to the Enemy: Faith, Brotherhood, and the (Un)Making of
Terrorists, publicado em 2010, tem por base esse trabalho.
Na sequência dos
atentados perpetrados em Paris em Janeiro, contra o semanário Charlie
Hebdo e um supermercado kosher, o PÚBLICO pediu-lhe para esclarecer uma
série de questões e alguns mal-entendidos que o terrorismo jihadista tem vindo
a reavivar, em relação às populações e à religião muçulmanas, na opinião
pública dos países ocidentais.
A religião islâmica conduz ao terrorismo?
Podemos dizer que existe hoje uma corrente violenta e brutal dentro do Islão que inspira o terrorismo.
O ódio do “outro” é inerente ao Corão?
Sim, tal como ao judaísmo e ao cristianismo. Mas a relação entre crença religiosa e acção depende totalmente da maneira como essa crença é interpretada e por quem. E pode ir do apoio absoluto e do sacrifício em nome da guerra ao apoio absoluto e do sacrifício em nome da paz.
Mas os muçulmanos estão menos abertos à crítica do que outras pessoas?
Os muçulmanos são geralmente tão abertos ao mundo judaico-cristão ocidental quanto o mundo judaico-cristão ocidental o é ao mundo muçulmano. Com uma diferença: conhecem melhor a história do Ocidente porque ela lhes foi imposta.
Mesmo os chamados peritos do contraterrorismo,
já para não falar dos políticos, do público e da imprensa ocidentais, não sabem
quase nada da história muçulmana nem de tudo o que ela significa: quem conhece
uma única das centenas de histórias sobre os quatro primeiros califas? O
paternal Abu Bakr, o gigante Omar (doce excepto com os seus inimigos), o
multimilionário Otman e o devoto e corajoso Ali? É como dizer que nunca ouvimos
falar de Napoleão ou de Abraham Lincoln…
Mas a actividade jihadista leva muitas pessoas a pensar que os
muçulmanos são mais dados a cometer actos de terror que os crentes de outras
religiões. É assim?
A maioria dos muçulmanos com quem falei não apoia a violência do Estado Islâmico (EI) ou da Al-Qaeda. Mas considera cada vez mais seriamente a ideia de um califado. “Talvez uma federação de povos muçulmanos, como a União Europeia”, como me disse um imã.
Acha que o Islão ainda não se reconciliou com a secularidade e a
modernidade, ao contrário, por exemplo, da Igreja Católica?
Se estamos a falar da secularidade e da modernidade ocidentais, é certo que não o fez. Mas já houve uma era reformista no Islão, entre finais do século XIX e a Guerra dos Seis Dias em 1967. E o reformismo “reacendeu-se” durante a Primavera Árabe. Contudo, este movimento não se conseguiu organizar politicamente e nunca estabeleceu pontes com as massas religiosas, rurais e urbanas de trabalhadores pobres.
O seu trabalho tenta perceber as raízes do terrorismo. Como se faz uma
“experiência científica” com grupos jihadistas?
Não temos grandes amostras de jihadistas. Portanto, temos de realizar entrevistas de fundo no terreno e, se possível, experiências muito controladas. E para o fazer, temos de convencer os jihadistas a pousarem as armas, a não falarem uns com os outros nem a qualquer líder que estiver por perto e a responder às nossas perguntas sem discutir.
Quando ganhamos suficientemente a
sua confiança para fazer isto, eles comportam-se como estudantes e fazem o que
lhes pedimos.
Claro que há certas perguntas que
não é possível fazer. Não podemos perguntar se abdicariam da sua fé em Deus ou
se mudariam de política ou de religião em troca de uma dada quantia de
dinheiro... Aí, arriscávamo-nos a levar um tiro.
O seu trabalho é perigoso?
Às vezes. Tenho o cuidado de combinar os encontros de antemão, mas quando um exaltado que não me conhece de sítio nenhum aparece inesperadamente, em geral preciso de sair rapidamente de cena.
Uma vez, tive de me esconder numa
mesquita dos Lashkar-e-Taiba [uma das maiores organizações terroristas] em
Rawalakot (Caxemira Livre) para fugir de uns tipos dos serviços secretos
paquistaneses que estavam a tentar acabar comigo para me impedir de relatar um
massacre numa aldeia.
Noutra ocasião tive de saltar
pela janela de uma casa de banho e esconder-me na selva. Foi em Poso Sulawesi,
uma ilha indonésia entre Bornéu e Nova Guiné, que na altura era uma confusão de
grupos jihadistas a combater cristãos. Um dos comandantes jihadistas tinha
acabado de saber que eu era judeu e um dos meus amigos dentro da organização
enviou-me um SMS a dizer que estavam a planear matar-me depois do pôr do
Sol.
Mas estas situações são raras.
Normalmente, só temos de lidar com os ocasionais bombardeamentos do costume.
Qual foi a principal conclusão do seu trabalho?
A de que uma combinação de valores sagrados e de fusão identitária pode produzir aquilo a que eu chamo “actores devotos”, por oposição a “actores racionais”.
Desde a segunda guerra mundial,
os analistas militares norte-americanos têm atribuído o espirito de combate
[das tropas] à liderança e considerado que as manifestações de camaradagem no
combate são uma manifestação racional de interesse pessoal.
"O jihadismo, tal como o
nazismo, é motivado por um sentido muito real de virtude moral."
Mas o nosso trabalho mostra que a
devoção incondicional a uma causa sagrada, aliada a um compromisso
incondicional com os camaradas, pode levar os elementos de um grupo a fazer
sacrifícios extremos, totalmente desproporcionados em relação às suas
perspectivas de sucesso.
Quais são as motivações dos terroristas que cometem atentados como os
de Paris?
Aventura, glória, importância. Trata-se na maior parte de jovens adultos numa fase de transição na sua vida, estudantes, imigrantes, pessoas entre dois empregos ou duas relações sentimentais, que abandonaram a família onde nasceram e estão à procura de uma nova família de amigos e de companheiros de viagem que possam dar sentido às suas vidas. E aqueles que vivem nas franjas da sociedade são particularmente vulneráveis ao canto da sereia jihadista.
Como é que os terroristas são recrutados?
Não há propriamente um recrutamento. Trata-se de pessoas que se auto radicalizam e procuram algo, não de guerreiros disciplinados. Não nos devemos deixar enganar pelo treino no Iémen. Os atacantes franceses eram muito semelhantes aos bombistas de Madrid ou do metro de Londres. Inspiram-se nos líderes jihadistas, sentem-se atraídos pelo Estado Islâmico ou pela Al-Qaeda, mas não são estes grupos que os identificam, os criam ou lhes fazem uma lavagem ao cérebro.
Está a dizer que o terrorismo jihadista no Ocidente se deve em parte ao
falhanço dos Estados na integração dos jovens muçulmanos?
Sim, mas o fenómeno vai para além dos muçulmanos. A alienação dos jovens ocidentais em relação às suas próprias elites no poder e aos valores das sociedades abertas também está a alimentar a franja xenófoba e nacionalista da direita e portanto, existe uma aliança tácita entre o nacionalismo xenófobo de direita e o Islão radical. E, devido à estagnação económica bem como à imigração em massa não assimilada e à porosidade das fronteiras, começa a causar uma ruptura na classe média, tal como o fascismo e o comunismo provocaram uma ruptura social na Europa nos anos 1920 e 1930.
Um problema central da sociedade
europeia, para além do Islão radical, é o crescente desinteresse das pessoas em
fazer grandes sacrifícios pelos valores liberais da democracia. Só em caso de
grave ameaça é que uma tal disposição é sequer exprimida, enquanto a vontade
[dos terroristas] em se sacrificar em nome da jihad, da sharia ou do califado é
hoje prevalente, inclusivamente em condições experimentais, mesmo na ausência
de ameaças específicas.
Essa radicalização tem lugar principalmente em mesquitas?
Os terroristas radicalizados nas mesquitas são uma minoria. Cerca de três em cada quatro pessoas que se juntam à jihad no Ocidente fazem-no através de amigos e cerca de 15% através de um familiar. Há muito, mas muito poucos que o fazem por causa das mesquitas ou enquanto “discípulos” de alguém.
O que é um “muçulmano moderado”, expressão popularizada nos últimos
tempos?
É algo que não existe. É uma versão ocidentalizada do “bom muçulmano”. Ouço frequentemente os políticos e a imprensa pregar o “Islão moderado” como sendo uma solução. É estúpido. Eu pergunto-lhes: “Não têm filhos adolescentes? Desde quando é que eles querem coisas moderadas? Querem heróis, querem ser importantes, querem aventuras, glória, a realização de ideais jovens. E o que é que as nossas democracias lhes oferecem? O sonho dos centros comerciais.
A jihad é a única ideologia
“anti-establishment” sistémica que está a crescer no mundo. E uma reacção
idiota a essa realidade, associada à publicidade histérica e ao medo, garante o
seu crescimento continuado.
Existe uma "comunidade muçulmana" que poderia, como afirmam
alguns, ser tida como responsável dos ataques de Paris?
Tal como na cristandade, tirando uma adesão básica ao Islão, não existe uma população muçulmana política ou culturalmente identificável pelos seus traços comuns e que congregue pessoas em França, no Ruanda, no Egipto e maias da Guatemala. Mas a jihad é uma parte muito proeminente da pressão política exercida pelos islamistas radicais para recuperar, sem piedade nem hesitação, o controlo de um destino que acreditam ter sido interrompido pelo Ocidente.
Há quem diga que não é possível separar o terrorismo jihadista do
Corão. O que acha desta posição?
A interpretação dos textos sagrados pode ser tão aberta como a da poesia. É por isso que existem os sermões semanais: para fornecer uma interpretação adaptada ao presente. E é essa abertura interpretativa que torna as religiões tão adaptáveis no tempo e em função do contexto.
E o que dizer daqueles que têm medo de ser acusados de islamofobia se
ligarem a jihad ao Islão?
Que se pensam isso, nem a lógica nem os factos os conseguirão ajudar. Dizer, como François Hollande, que estes fanáticos nada têm a ver com o Islão, é o cúmulo do politicamente correcto e é contraproducente.
Em vez de encarar esta tendência
brutal do Islão radical e as razões pelas quais ela é tão atraente, nega-se
simplesmente a sua existência, à maneira de uma avestruz. Considera-se que se
trata de niilismo, de fanatismo ou de um disparate desse género. É ser-se
deliberadamente cego ao que está a acontecer e ao que é preciso fazer.
O que é preciso fazer?
Primeiro, perceber que o jihadismo, tal como o nazismo, é motivado por um real sentido de virtude moral. Porque sem virtude, não seria de todo possível fazer o voto de matar tanta gente que nunca fez mal a ninguém.
Em segundo lugar, as pessoas mais
ameaçadas pelos jihadistas devem ser encorajadas e capacitadas para se
rebelarem contra eles. O EI e a Al-Qaeda querem trazer as suas guerras para as
ruas do Ocidente para reforçar a aliança tácita entre a direita radical e o
Islão radical, de forma a marginalizar ainda mais as populações muçulmanas da
Europa e levá-las a ver a jihad como uma alternativa viável.
É pouco provável que o “Islão
moderado” (na Europa) e a democracia (no Médio Oriente e na África do Norte) sejam
antídotos suficientemente fortes e credíveis. As eleições só têm significado
democrático quando sustentam valores liberais: uma imprensa livre, uma justiça
igual para todos, a tolerância das minorias ou até as opiniões ultraminoritárias.
Os norte-americanos pensaram que
bastava ter eleições para obter uma democracia à imagem da sua no Iraque e no
Afeganistão, à semelhança dos britânicos, que pensavam que bastava pôr uma
peruca na cabeça dos juízes dos tribunais africanos para garantir justiça e
igualdade de todos perante a lei.
Que ignorância histórica, que
arrogância! Seria cómico se os resultados não fossem tão destruidores.
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