Liberdade em Spinoza e tolerância hoje - Por Bruno Amaro Lacerda
No Tratado
teológico-político, Spinoza (1632-1677) sustenta uma concepção de Estado livre
cuja ênfase não está, como em Locke, na liberdade de crença e de culto, mas na
liberdade de manifestação do pensamento. Como ninguém pode renunciar ao direito
natural de pensar, os homens têm opiniões discordantes sobre questões variadas,
e não são as disputas de pensamento que geram a exacerbação das paixões que se
transmutam com frequência em violência, mas, ao contrário, é a impossibilidade
de se expressar livremente que conduz ao conflito.
O contrato social exige de cada
homem a renúncia ao direito de atuar por decisão exclusivamente própria (já que
os direitos naturais são entregues voluntariamente ao poder soberano), devendo
todos os homens, a partir do pacto, agir pelo acordo comum consolidado na lei.
Mas essa renúncia não abrange o direito de julgar e de raciocinar por conta
própria. No Estado Democrático, que Spinoza acredita ser o que mais se aproxima
do estado natural, os homens estabelecem que deva ter força de lei o
entendimento que receba mais votos, reservando-se sempre o direito de alterar o
que foi positivado caso se convençam mais tarde de que há um pensamento melhor.
É por isso que não se pode renunciar ao direito de exprimir-se livremente:
equivaleria a abrir mão das atualizações sociais que o pacto exige.
Por isso, um Estado é bom quando
consegue garantir aos indivíduos um espaço de discurso livre, sem o qual uma
vida social saudável não se viabiliza: “(...) é necessário conceder aos homens
a liberdade de julgamento e governá-los de tal sorte que, ainda que pensem
abertamente coisas distintas e opostas, vivam em paz” [1]. O mau Estado, por sua vez, é o
eclesiástico, que incute na mente dos fiéis o medo e a rejeição a tudo aquilo
que se afasta do pensamento canônico da Igreja: “O Estado mais violento será,
pois, aquele que nega a cada um a liberdade de dizer e ensinar o que pensa” [2].
Embora não exista em Spinoza uma
teoria específica da tolerância, pode-se entender que o Estado a ser buscado é
aquele capaz de garantir a manifestação de pensamentos divergentes, e o Estado
a se evitar o que impõe um modo de pensar definitivo, que converte os homens,
seres racionais, em autômatos dominados pelo medo:
“Dos fundamentos do Estado,
anteriormente explicados, segue-se, com toda evidência, que seu fim último não
é dominar os homens pelo medo e submetê-los a outro, mas, ao contrário,
livrá-los do medo para que vivam, na medida do possível, com segurança; isto é,
para que conservem ao máximo este seu direito natural de existir e de agir sem
dano próprio nem alheio. (...) O verdadeiro fim do Estado é a liberdade” [3].
Com isso, Spinoza contrapõe sua
tese também à de Hobbes. O vínculo social não deriva do temor da guerra de
todos contra todos, mas da razão dos cidadãos, que enxergam na força estatal um
instrumento para a proteção da sua liberdade. Como diz Guido Fassò, a paz que o
Estado de Spinoza quer assegurar não é “a trégua na guerra de todos contra
todos”, mas “a atuação de uma ordem ética realizadora da verdadeira natureza do
homem, que é a racionalidade e, por isso, a liberdade” [4].
Esta concepção sobre a liberdade
de pensamento merece ser objeto de reflexão nos dias atuais, sobretudo em
certos contextos políticos e jurídicos que confundem intolerância com
pensamento divergente. Se tolerar significa estar disposto a afirmar um
modelo de Estado que garante ao outro defender seu pensamento, mesmo quando
este seja para mim estranho ou até detestável, é contraditório nomear uma ideia
diferente, cuja propagação não está proibida pelo poder estatal, de intolerante
e, como consequência, perseguir aqueles que pensam diversamente.
Como explica Yves-Charles Zarka,
o viver junto (coexistência) não exige necessariamente a partilha de um destino
comum (a aceitação da mesma ideia de “vida boa”), mas somente o abandono da
perspectiva unilateral do “eu individual” para deixar que o outro também possa
subsistir em sua liberdade: “O espírito de tolerância é a capacidade de se
colocar no lugar do outro” [5]. É a exigência que o outro me endereça
para respeitá-lo em sua diferença somada à minha exigência de que o mesmo
tratamento seja-me dado. A reciprocidade é essencial à tolerância.
Mas colocar-me no lugar do outro
e admitir sua defesa de ideias e concepções divergentes não exige adesão a
essas diferenças, nem me retira a possibilidade de criticá-las. E isto é fácil
de entender: é justamente porque se está diante do diverso, do oposto, que a
tolerância é posta em ação. Não faria sentido algum tolerar a
manifestação de um pensamento idêntico ao meu.
Voltando à Spinoza, a liberdade
de manifestação do pensamento deve ser garantida pelo Estado sempre que não
atentar contra os princípios do pacto social. Esse limite é ultrapassado pelas
práticas que o filósofo chama desediciosas, que são “aquelas cuja existência
suprime, ipso facto, o pacto pelo qual cada um renunciou ao direito a agir
segundo o próprio critério” [6]. Como exemplo, cita o pacta sunt servanda,
princípio jurídico-político indispensável para a manutenção dos liames da vida
social. Nesse sentido, a defesa de que as leis possam (ou devam) ser
descumpridas é completamente desarrazoada porque viola o núcleo da sociedade
política. A apologia e a incitação ao crime, por isso, não podem ser toleradas,
pois negam o próprio pacto. Nos nossos dias, também não poderíamos aceitar a
manifestação de um pensamento que negasse o núcleo axiológico de nossa
sociedade (pense-se, por exemplo, em um livro cujo autor defenda práticas
discriminatórias de cunho racista). O racismo não pode ser tolerado, é
intolerável. Como diz Paul Ricoeur, “Qual o critério do intolerável? Não pode
haver senão um: é o que não merece respeito, se o respeito é a virtude da
tolerância no plano cultural” [7]. A liberdade não pode ir tão longe a
ponto de ameaçar as estruturas que a possibilitam: o seu limite é a própria
liberdade, fim ético do Estado.
Deste modo, somente deve ser
tolerado o pensamento que não viole o pacto (ou, como diríamos hoje, os valores
fundamentais da sociedade). Diz Zarka: “até onde devemos ser tolerantes?, nós
sustentamos que o limite absoluto da tolerância se encontra nos princípios
fundamentais que definem uma democracia constitucional” [8].
A contrario sensu, o pensamento
divergente, mas que não vai de encontro aos fundamentos do Estado, pode ser
manifestado com o manto protetor da liberdade de expressão. Assim, chamar de intolerante um
pensamento que não agride aqueles valores, mas que é apenas diferente dos
pensamentos que outras pessoas ou setores da sociedade têm sobre determinada
questão, não é apenas uma corrupção do sentido das palavras “tolerância” ou
“intolerância” [9], mas uma violação direta àquele fim ético
que o Estado tem por vocação resguardar: a liberdade pessoal.
Pode-se citar como exemplo a ação
civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal em face do Google Brasil
Internet Ltda., na qual se requeria ordem judicial para retirada de vídeos no Youtube considerados
ofensivos às religiões brasileiras de origem africana, como a umbanda e o
candomblé, como foi bastante noticiado pela mídia. O juiz da 17ª Vara Federal
do Rio de Janeiro indeferiu o pedido de antecipação de tutela [10], entendendo que os vídeos, embora de
“mau gosto”, estavam compreendidos dentro da liberdade de manifestação de
pensamento (“são manifestações de livre expressão de opinião”).
Ocorre que o juiz escreveu também
que “macumba, umbanda, candomblé ou quimbanda” eram apenas cultos, mas não
religiões, por falta de um texto-base e um Deus pessoal: “No caso, ambas
manifestações de religiosidade não contêm os traços necessários de uma religião
a saber, um texto base (corão, bíblia etc) ausência de estrutura hierárquica e
ausência de um Deus a ser venerado”, afirmou.
As reações a essa colocação foram
tão fortes que, poucos dias depois, o juiz proferiu um despacho no qual
mantinha sua decisão, mas alterava seu entendimento de que as crenças em
questão não eram religiões, afirmando agora que “o forte apoio dado pela mídia
e pela sociedade civil, demonstra, por si só, e de forma inquestionável, a
crença no culto de tais religiões”. Esta manifestação posterior parece não ter
sido uma mudança real de pensamento do juiz, mas somente uma resposta destinada
a apaziguar a revolta de certos segmentos da sociedade.
Ora, a pergunta a ser feita é a
seguinte: um juiz não pode entender que certas práticas sociais não são
religiões, desde que não obstaculize o seu livre exercício? A liberdade
religiosa exige apenas o respeito às práticas que as pessoas consideram como
“religiões” ou também sua afirmação pública como “religiões verdadeiras”?
É evidente que o dever jurídico
constitucionalmente imposto é o de respeitar o que as pessoas praticam como
religião, e não o de avalizar publicamente essas práticas como religiões
efetivas. O direito dos adeptos da umbanda e do candomblé, como o dos cristãos,
judeus, muçulmanos, budistas etc., é o de praticar livremente os cultos,
liturgias e modos de vida que concebem como sagrados, e não o de estarem imunes
às críticas dos que têm entendimentos diversos sobre o assunto. O conceito de
religião, ademais, não é unívoco, mas extremamente problemático na Ciência da
Religião. Klaus Hock, por exemplo, explica que do começo do século XX até hoje
as “tentativas de definir ‘religião’ cresceram para um número que não pode ser
registrado” e que o termo “não é usado de modo uniforme, e até sua derivação
terminológica é disputada” [11]. Assim, em meio a tantas desavenças,
porque somente o juiz estaria proibido de expressar o que pensa a respeito?
Alguém até poderia, para se
clarear o argumento aqui exposto, negar validade a todas as religiões,
sustentando, por exemplo, que a ideia mesma de religião não faz sentido. Esta
posição não seria um problema, desde que essa pessoa respeitasse as
práticas nas quais os demais, ao contrário dela, acreditam. Mas ela não estaria
impedida de opinar diversamente ou de criticar a crença alheia como falsa,
equivocada ou não-religiosa.
O curioso do caso é que o
protesto não era direcionado à decisão em si, mas à posição pessoal do juiz
sobre as religiões em questão. Ao retificar apenas esse ponto, sem alterar em
nada o mérito da decisão, o juiz fez com que os reclamantes se dessem por
satisfeitos, fato que evidencia que seu objetivo era apenas a opinião do
juiz e não a efetiva retirada dos vídeos do Youtube. Alguns deles,
inclusive, falaram que o juiz havia sido “intolerante” [12].
Mas, como visto, o limite da
tolerância é a liberdade. Por isso, devem ser toleradas todas as manifestações
de pensamento que não violem os valores sociais que sustentam o pacto social,
e, por outro lado, consideradas intoleráveis apenas as ideias que agridem esses
valores. No caso em questão, em quê a opinião manifestada pelo juiz viola o valor
fundamental em jogo, a liberdade religiosa dos adeptos do candomblé, umbanda
etc.? Em que medida os cultos, liturgias e práticas de vida sofreram algum
obstáculo ou prejuízo pela manifestação do juiz em sua decisão?
O pensamento do juiz é estranho
para muitos? Pode estar errado? Sim, mas não é justamente esse tipo de oposição
de pensamento que, para Spinoza, deve ser garantida por um Estado livre? Se
considerarmos que a manifestação do juiz não atinge os princípios do Estado
Democrático, não deveríamos tolerá-la, mesmo que discordando? Dito isto, é
preciso refletir com D. A. Carson: não serão os que acusam de intolerância os
verdadeiros intolerantes?
Referências
[1] SPINOZA, Baruch. Tratado
teológico-político. Barcelona: Altaya, 1997, Cap. XX, p. 417.
[2] SPINOZA, Baruch. Tratado
teológico-político, Cap. XX, p. 410.
[3] SPINOZA, Baruch. Tratado
teológico-político, Cap. XX, p. 410-411.
[4] FASSÒ, Guido. História de la filosofía
del derecho. Volume II. La Edad Moderna. Madrid: Pirámide, 1982, p. 119.
[5] ZARKA, Yves-Charles. Difícil
tolerância: a coexistência de culturas em regimes democráticos. São Leopoldo:
Editora Unisinos, 2013, p. 41.
[6] SPINOZA, Baruch. Tratado
teológico-político, Cap. XX, p. 413.
[7] RICOEUR, Paul. Tolerância, intolerância,
intolerável. In: Leituras 1: em torno ao político. São Paulo, Loyola, 1995, p.
185.
[8] ZARKA, Yves-Charles. Difícil
tolerância: a coexistência de culturas em regimes democráticos, p. 123.
[9] Como sugere CARSON, D. A. A intolerância
da tolerância. São Paulo: Cultura Cristã, 2013, p. 12-16.
[10] Ver a decisão em: http://s.conjur.com.br/dl/decisao-negou-retirada-videos.pdf.
Acesso em 12.10.2014.
[11] HOCK, Klaus. Introdução à ciência da
religião. São Paulo: Loyola, 2010, p. 17.
[12] Como, por exemplo, pode-se ver em:http://oglobo.globo.com/sociedade/ato-criticara-juiz-que-disse-que-umbanda-candomble-nao-sao-religioes-12541627.
Acesso em 16.10.2014.
Bruno Amaro Lacerda - professor
adjunto da UFJF. Doutor e Mestre em Direito pela UFMG.
Fonte: http://www.conjur.com.br
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