O machismo de Israel (ou por que você só percebe a opressão às mulheres árabes) – Por Elena Judensnaider Knijnik
Bendito és Tu, A-do-nai, nosso
D-us, Rei do Universo, que não me fez mulher¹.
Este trecho faz parte da benção
matinal judaica, que é recitada todas as manhãs por judeus, enquanto judias
terminam a reza substituindo a parte destacada por que me fez conforme Sua
vontade.
Eu cresci em um ambiente judaico
praticante que, apesar de não ortodoxo, compartilhava espaços sagrados com
famílias mais religiosas. Quando criança, me disseram para recitar a frase
acima sempre ao acordar. Vi minha mãe ir ao mikvé, local em que acontece um
ritual para purificação da mulher após cada menstruação e o
nascimento de um filho. Vi minha avó usar peruca, porque judias religiosas não
podem mostrar seu cabelo natural para qualquer homem que não seja da família.
Fui convidada para casamentos de
garotas de menos de 20 anos. Ouvi de professoras de escolas judaicas que as
garotas não precisavam aprender tanto, afinal, logo casariam e teriam filhos e suas
vidas se resumiriam a isso.
Ouvi que os rabinos acompanhavam
o ciclo menstrual das mulheres e as orientavam a ter relações conjugais com
seus maridos nos dias férteis. Fui a sinagogas em que as mulheres se sentavam
de um lado e os homens de outro. Em algumas, os homens ficaram no andar
inferior, de frente à Torá (livro sagrado judaico), enquanto às mulheres
ficavam reservadas poucas cadeiras, no andar superior, de onde mal se conseguia
assistir às rezas.
Quando ia à sinagoga, eu tirava a
roupa cotidiana e me vestia de acordo com a ocasião: precisava cobrir meu corpo
entre os joelhos e os cotovelos, e para isso tinha separados camisas
três-quartos, saias que iam até depois do joelho e sapatos fechados. Eram as
"roupas de sinagoga" e eu não questionava a mudança das vestimentas,
considerando que se tratava de algo relacionado à etiqueta daquele lugar tão
diferente da minha casa.
Mas me deixava muito chateada que
uma amiga ortodoxa da minha idade não pudesse assistir televisão comigo, e eu
achava estranho que conhecidas mais velhas estivessem em vias de se casar com
quem não conheciam.
Uma vez, ainda criança, reclamei
para minha tia que tudo aquilo não era justo. Ela me respondeu firme, sem
perceber a grande lição que estava me dando sobre relativismo cultural:
"para elas, isso é felicidade". Não pensei mais no assunto nos
anos seguintes, procurando acreditar que minha tia estava certa.
Mas ela, que é mulher e judia,
vai lutar pela Palestina?
Um familiar contou que ouviu essa
frase, relacionada a mim, vinda de um funcionário de uma instituição judaica
(não sei qual), quando teve conhecimento de que eu estava começando a militar a
favor da Palestina. Imagino que ele não soubesse que, assim como eu estava me
introduzindo e engajando na causa palestina, também me aproximava do feminismo.
A verdade é que foi ótimo ter
ouvido essa frase, pois ela me deu muito mais clareza para entender a
necessidade de lutas transversais, ou seja: não adianta lutar contra o
sionismo sem lutar contra o machismo; não adianta lutar contra o machismo sem
lutar contra o racismo e por aí vai.
As lutas se complementam. Percebi
que por ser mulher eu tinha ainda menos direito de me posicionar contra o
sionismo e suas políticas fascistas. Isso se deve, além de ao machismo
estrutural do qual os judeus não escapam, ao machismo particular reproduzido
pelo judaísmo, principalmente o ortodoxo.
Mas não é exatamente sobre isso
que quero falar.
Os grupos políticos ligados ao
judaísmo costumam se colocar no campo ideológico oposto ao do islamismo,
destacando principalmente os perigos que o extremismo islâmico pode representar
para mulheres.
Talvez, por isso, seja
surpreendente que o judaísmo não seja isento de práticas religiosas e culturais
que segregam as mulheres. A questão é: o julgamento de um grupo sobre religiões
alheias é determinado pelo poder de que o grupo dispõe.
Não, não se trata de campo
ideológico. Trata-se de poder: ainda que a maior parte das religiões
monoteístas seja patriarcal, quem tem poder, tem legitimidade para exercer o
machismo; quem tem mais poder ainda, pode exercer o machismo sem ser condenado
internacionalmente.
Não estou, aqui, querendo
comparar qualitativamente as obscenidades perpetradas pelo Estado Islâmico com
aquelas cometidas pelos Haredim (judeus ortodoxos) ou ainda com o que pregam
alguns líderes evangélicos no Brasil.
Minha intenção é apenas a de
demonstrar que os crimes à humanidade praticados por grupos religiosos não
devem ser analisados na chave cultural (ou, ainda, moral), e sim na chave do
poder. Porque eles existem em todos os grupos, mas o desenvolvimento ou a
divulgação dos atos é proporcional ao seu poder, seja ele econômico, social,
político ou militar.
É difícil nos distanciarmos dos
paradigmas que o relativismo cultural nos impõe para discutir política, e isso
inclusive dentro da esquerda: muito se confunde a defesa do oprimido com a
defesa da cultura ou religião do oprimido, perdendo de vista as motivações de
fato da opressão. É a condição social de origem dos imigrantes que determina a
quem a xenofobia será dirigida.
Na Europa, por exemplo, os russos
que imigraram no início do século XX não sofreram o preconceito que os armênios
sofreram em seguida e que os árabes sofrem hoje, justamente por conta de terem
pertencido à elite em seu país de origem. Ou seja: poder.
Os Haredim
Em Israel, por exemplo, os
ortodoxos judeus têm muito poder. Ainda que haja grande oposição ao extremismo
religioso judaico dentro do país, a situação é especialmente preocupante devido
ao interesse sionista nesse setor da sociedade.
Para que o governo tenha
legitimidade para reivindicar o território é importante que haja uma população
predominante na região. Se formos considerar Israel e os territórios ocupados,
a população judaica não chega a metade.
Essa é uma questão que existe
desde a partilha da Palestina: apesar de o plano conceder 53% do território aos
judeus, havia, à época, 600 mil judeus e 1,3 milhão de árabes na região. De lá
para cá, a questão demográfica passou a ter muita importância. Para resolvê-la,
o governo israelense promove campanhas de Aliá, ou seja, a imigração de judeus
para Israel, baseadas na Lei do Retorno, que permite a concessão de cidadania
israelense a qualquer judeu do mundo.
E é aí que entram os ortodoxos:
com uma média de 6 a 7 filhos por família, os ortodoxos respondem a uma demanda
urgente do Estado sionista de povoar e, consequentemente, controlar a região.
Nesse contexto, e levando em consideração que, para o judaísmo, só é judeu quem
tem a mãe judia, a mulher serve meramente como procriadora. Para isso,
como incentivo ao estabelecimento e procriação dos ortodoxos, o governo oferece
a eles isenção de impostos; dispensa do exército e subsídios financeiros.
Com isso, os ortodoxos têm muito
poder. E, por ter poder, fazem mulheres serem detidas² por quererem rezar
"como os homens". Proíbem as mulheres de cantar publicamente, de
aparecer em outdoors ou de ser premiadas.
Colocam em circulação ônibus com divisórias,
para que as mulheres se sentem na parte de trás e segregam as mulheres até nas
calçadas. Agridem e chamam uma garota de oito anos de prostituta por não usar
roupas "corretas". Segregam as mulheres nas ruas. Apagam lideranças
políticas mulheres de fotografias de grande repercussão mundial. Se recusam a
sentar³ ao lado de mulheres em voos internacionais.
Sim, alguns desses casos são
pontuais e não devemos generalizar a conduta de todo um setor da sociedade.
Mas é importante notar duas
coisas com relação aos ortodoxos judeus: a proteção institucional vinda do
governo e a blindagem internacional vinda da mídia. Por que economizar a
condenação moral, sempre tão bem-vinda à grande mídia, e ignorar uma
problemática que é objeto de preocupação crescente entre os próprios
israelenses?
Enquanto isso, programas de
propaganda sionista (conhecidos como Hasbará) continuam a divulgar: Israel
é o país mais democrático do mundo.
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¹ Manual de Bençãos, Editora Chabad.
²Jerusalém não é de ouro. Gabriela Korman. Yallah!, fev. 2013.; Dez mulheres judias detidas em Israel por quererem rezar como os homens. RTP Notícias, fev. 2013.
³Após confusão com judeus ortodoxos em voo para Israel, mulher cria petição online pedindo providências de companhia aérea. Brasil Post, set. 2014.
¹ Manual de Bençãos, Editora Chabad.
²Jerusalém não é de ouro. Gabriela Korman. Yallah!, fev. 2013.; Dez mulheres judias detidas em Israel por quererem rezar como os homens. RTP Notícias, fev. 2013.
³Após confusão com judeus ortodoxos em voo para Israel, mulher cria petição online pedindo providências de companhia aérea. Brasil Post, set. 2014.
Fonte: http://www.brasilpost.com.br
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