Violência e religião: questão prioritária – Por Maria Clara Bingemer
Um dos maiores problemas para a
humanidade neste primeiro quartel do século XXI é a relação entre a religião e
a violência. Todos os observadores dos fatos e grupos sociais o reconhecem.
Basta mencionar os recentes massacres perpetrados contra cristãos em vários
países, além de perseguições concretas a indivíduos ou grupos devidos
exclusivamente à religião que professam, como é o caso da Universidade de
Garissa, na Nigéria.
O êxodo incessante de africanos
que aportam às costas da Europa e o de latinos que cruzam as fronteiras dos
Estados Unidos, sendo violentamente reprimidos pelas polícias locais, também
carregam dentro de si uma conotação religiosa não disfarçável.
A violência
cobre o planeta em muitos de seus pontos importantes, muitas vezes relacionada
de perto com a religião e seus fanatismos e subprodutos, tais como os
fundamentalismos de toda espécie, as guerras santas, as "limpezas
étnicas" e outros. As análises feitas sobre este fenômeno, no entanto,
permanecem, na maior parte das vezes, na superfície. Não retêm nada além da
emergência sempre mais forte dos “integrismos” de toda espécie, focalizando
suas reflexões preferentemente sobre o fundamentalismo muçulmano.
Ora, parece-nos que a questão é,
na verdade, muito mais ampla e profunda. Não atinge apenas os integrismos, mas
muitas práticas religiosas e até mesmo as religiões, inclusive as grandes
religiões do Ocidente e as religiões monoteístas. E isso em termos de
compreensão e de prática.
A questão da violência e do mal, e,
por contraste, também da não violência, está, portanto, no centro da reflexão
hodierna sobre a religião e o fenômeno religioso. E mostra com clareza que é
inseparável das repercussões políticas que podem ter sua administração e
reflexão em todos os níveis.
Por isso, parece-nos que tem de
estar no centro do pensamento teológico cristão ocidental, assim como das
ciências que se ocupam do estudo das religiões. Através dessas áreas de estudo
e pesquisa podem surgir iluminações verdadeiramente primordiais e, ousaríamos
dizer, definitivas, para todo o pensamento ético e religioso que se elabora em
torno desta questão.
É inevitável a constatação de que
a violência permeia toda a história da humanidade, desde a antiguidade, chegando
aos nossos dias, e apresenta um rosto multifacetado, onde cabem desde os jogos
do circo romano, a tortura, passando pelo genocídio, o terrorismo, o
infanticídio e outras variadas formas.
Por outro lado, é importante situar a
violência no horizonte que lhe é próprio, ou seja: para além dos limites do que
é lógico e pensável, no campo do irracional e, por isso mesmo, do perturbador.
Neste sentido, o tema da violência faz fronteira com algo que também é
impensável racional e filosoficamente. Algo que também e igualmente releva do
ilógico e do perturbador: o amor, o desejo, a bondade, a fé, a comunicação com
o Transcendente.
Para encontrar a interface
entre violência, religião e política, há que situar-se nesta raiz mais profunda
da violência, reconhecendo a contribuição indispensável das ciências sociais na
análise de suas causas remotas e imediatas, mas nelas não se detendo, e
procurando ir mais longe, até onde a análise da realidade cede lugar à reflexão
sobre os fundamentos do que é o humano.
Para a teologia e as ciências da
religião, interessa sobretudo a possibilidade real de uma ética fundada na
articulação de coisas tão verdadeiras e, no entanto, tão pouco palpáveis pelas
ciências empíricas, como o amor e a verdade, criadores de liberdade e possibilitadores
de um ethos da paz e da não violência. Importa contribuir modestamente para a
descoberta dos caminhos de uma ética construtiva, de respeito a direitos
individuais e coletivos, e para o levantamento de elementos para a crítica de
uma ética destrutiva e suicida.
Importa erigir uma ética que abra
caminho para o ethos do amor e deixe livre caminho à palavra da teologia. Esse
caminho aberto tem a ver com a compreensão do ser humano como ser provisório e
de passagem. Ser “pático” (de paixão) e ser pascal (de passagem), o ser humano
não é chamado a construir sua sabedoria e sua ética enquanto “ciência do mal”.
E a violência que aflige e dizima nossas sociedades, hoje, é convocada a se
defrontar, para decifrar seus próprios enigmas, com uma “ontologia relacional”
que inverte as equações e cria, a partir do ilógico do amor, uma nova lógica.
* professora do Departamento de
Teologia da PUC-Rio. A teóloga é autora de: “O mistério e o mundo, Paixão por Deus
em tempo de descrença”, Editora Rocco.
Fonte: http://www.jb.com.br
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