América Latina festeja seus mártires
Beatificação do bispo
salvadorenho Óscar Romero marca reconciliação do Vaticano com movimentos de
esquerda do continente.
Para especialistas, medida ressalta visão do papa
Franscisco de uma Igreja voltada para os pobres. Em sua terra natal, El Salvador,
o arcebispo Óscar Romero é reverenciado como um herói nacional e defensor da
paz e da justiça. O presidente do país, Salvador Sánchez Cerén, vê a
beatificação como o início de uma nova era.
"A América Latina tem agora,
finalmente, um santo. Que seu exemplo sirva para para mudar o país", disse
ele à imprensa local.
Para Sánchez Cerén, um
ex-comandante guerrilheiro da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional
(FMLN), assim termina a Guerra Fria também na América Latina, pois a suposta
ameaça do comunismo, que levou a que, nos anos 1970 e 80, os EUA apoiassem
juntas militares na região, finalmente passou a ser parte da história.
"Óscar Romero é um gigante
da história da América Latina", concorda o presidente equatoriano, Rafael
Correa, que participa da cerimônia de beatificação, neste sábado (23/05). Ele
acredita que, com ela, os mártires da América Latina finalmente recebem o justo
reconhecimento.
A beatificação do arcebispo de
San Salvador vem tarde. E, ainda assim, agrada em cheio à esquerda política e
aos seguidores da Teologia da Libertação na América Latina. Pois sacerdotes e
bispos com ideias revolucionárias, que não aceitam a pobreza dos fiéis como uma
dádiva de Deus, mas como algo que deve ser combatido com a ajuda divina, tinham
até agora poucos defensores no Vaticano.
A eleição do Papa Francisco, em
2013, marcou o início de uma mudança política na Igreja. Após a reaproximação
entre Cuba e os Estados Unidos, o primeiro latino-americano a comandar o
Vaticano enviou mais um sinal da reconciliação política: o arcebispo Óscar
Romero, assassinado a tiros em 24 de março de 1980 durante uma missa, não é
mais considerado um revolucionário ou um comunista, mas um santo defensor dos
direitos humanos.
Virada canônica
Segundo o teólogo e escritor
brasileiro Leonardo Boff, a beatificação de Óscar Romero traz uma nova
interpretação do martírio. "Alguém que defende os pobres com a própria
vida também é santo", afirma.
Para o ex-padre franciscano
brasileiro, que já foi punido pelo Vaticano por pregar a Teologia da
Libertação, este é um triunfo tardio. "Finalmente temos um santo da
Teologia da Libertação para os pobres", diz Boff, acrescentando que isso
também explica por que tantos chefes de Estado confirmaram participação na
cerimônia religiosa, pois Romero seria um "santo político".
Fora do Vaticano, Romero tem sido
reverenciado como um ícone da paz e da justiça. Em 2011, o presidente dos EUA,
Barack Obama, se ajoelhou no túmulo do "bispo dos pobres". As Nações
Unidas dedicaram um dia em sua homenagem, parlamentares britânicos o indicaram
para o Prêmio Nobel da Paz.
Reconhecimento para bispos
"vermelhos"
O papa Francisco não só suspendeu
o bloqueio contra a beatificação de Óscar Romero. Ele também anunciou que irá
examinar a beatificação de outro crítico do sistema: Dom Hélder Câmara. O
"arcebispo vermelho de Recife" já levantava sua voz na década de 1950
contra a injustiça social e foi um defensor dos direitos humanos durante a
ditadura militar brasileira.
Em seus sermões, Hélder Câmara
expôs a hipocrisia social: "Quando dou comida aos pobres, me chamam de
santo. Quando pergunto por que eles são pobres, chamam-me de comunista", é
uma de suas frases mais conhecidas.
Óscar Romero, Dom Hélder Câmara,
Gustavo Gutierrez, Jon Sobrino e Leonardo Boff: os fundadores da Teologia da
Libertação na América Latina não só atuaram na resistência às ditaduras
militares e pela justiça social, como também levantaram uma questão que até
hoje ainda instiga discussões: pode a fé cristã ser revolucionária?
Engajamento silencioso
O arcebispo de Maringá, Anuar
Battisti, responde a esta questão com um sonoro "sim". "Claro
que ainda existem padres e bispos comprometidos com os pobres, eles só não se
expressam de forma tão radical como antes", afirma, em entrevista à DW. O
arcebispo observa que os tempos em que a luta social era proclamada nas
paróquias ficaram "definitivamente para trás".
Para Battisti, a beatificação de
Romero enfatiza a visão do Papa Francisco, que inclui a noção de uma Igreja
humilde, que dispensa a pompa. "O engajamento em favor de grupos sociais
desfavorecidos acontece hoje em silêncio", ressalta o religioso. "Não
há mais confrontação aberta com governos ou com o sistema político".
Mas a luta de décadas contra
teólogos da libertação, católicos de esquerda e reformadores deixou feridas
profundas. Por isso, as planejadas beatificações são, para muitos na esquerda,
como um bálsamo, mesmo ocorrendo tardiamente.
A esquerda da América Latina
espera que futuramente a aura santa de Romero também brilhe sobre ela. Em
Salvador, Nicarágua e Honduras, camisetas com retratos de Salvador Allende e
Che Guevara são vendidas ao lado de roupas com o rosto de Óscar Romero.
Fonte: http://www.dw.de
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