As contradições no reconhecimento a Dom Romero dentro e fora da Igreja – Por Marcela Belchior
Em meio ao contexto de
beatificação de Dom Óscar Romero, efetivada no último dia 23 de maio, na
Arquidiocese de San Salvador, líderes sociais e religiosos divergem quanto ao
reconhecimento da luta do salvadorenho durante o período de guerra civil por
que passou o país, de 1980 a 1992.
Enquanto uns destacam sua figura como a de
um importante líder político, outros o conceituam como um mestre religioso. Em
ambos os casos, a Teologia da Libertação pode ser vista como permeando o
pensamento e as ações de Romero.
Essa divisão de visões era ainda
mais forte em anos anteriores, inclusive durante o pontificado de João Paulo II
(1978-2005), quando havia um grupo de bispos que não estavam de acordo com uma
beatificação de Monsenhor Romero. A divergência se suavizou com o tempo e,
especialmente, a partir da chegada de Francisco no Vaticano. Contudo, a
interpretação sobre o legado de Romero não possui consenso.
Mesmo persistindo as divergências
em torno da figura de Monsenhor Romero, na celebração de beatificação do sacerdote
salvadorenho não faltou a presença de representantes de várias religiões e
igrejas, de diversos países, além de líderes dos mais diversos setores
políticos, empresários e donos de grandes veículos de comunicação.
Para discutir a questão, a Adital entrevistou
Francisco de Aquino Júnior, presbítero da diocese de Limoeiro do Norte (Ceará),
doutor em Teologia pela Universidade de Münster (Alemanha) e professor de
teologia na Faculdade Católica de Fortaleza e na Universidade Católica de
Pernambuco.
Essas contradições respondem ou correspondem a interesses sociais e
eclesiais muito concretos, ainda que muitas vezes sutis. "O próprio Romero
viveu na pele essas contradições na Igreja e na sociedade salvadorenhas”,
destaca Aquino Júnior.
ADITAL - Podemos observar pelo
menos duas dimensões que envolvem a beatificação de Monsenhor Óscar Romero: a
religiosa e a política. Como explicar cada uma delas no reconhecimento do
mártir pela Igreja?
Francisco de Aquino Júnior - A
fé cristã diz respeito a todas as dimensões da vida humana: pessoal, social,
política, econômica, cultural, religiosa etc. Por isso, um cristão não pode
ficar indiferente ao que acontece no mundo. A concentração de bens, a
injustiça, a violência, por exemplo, são também problemas de fé porque são uma
negação da vontade de Deus neste mundo; são pecados mortais diante dos quais um
cristão não pode se curvar, mas tem que lutar contra, mesmo que pague por isso
com a própria vida como fez Romero.
Ele não foi assassinado por acaso
nem apenas porque estava presidindo uma celebração eucarística. Foi assassinado
porque, como Jesus, viveu eucaristicamente, colocou-se do lado dos pobres,
defendendo suas vidas frente aos poderes econômicos e políticos de El Salvador,
e apoiando suas lutas e organizações. Seu martírio tem, indiscutivelmente, uma
dimensão política. Foi assassinado porque viveu evangélica e profeticamente a
dimensão política da fé.
ADITAL - É possível separar esses
dois aspectos na práxis de Romero em El Salvador?
FAJ - Na verdade, como dizia
Romero, "a fé cristã e a ação da Igreja sempre tiveram repercussão
sociopolítica. Por ação ou por omissão, pela conivência com um grupo social ou
com outro, os cristãos sempre influenciaram na configuração sociopolítica do
mundo em que vivem”, embora, nem sempre, de acordo com o Evangelho.
Mas, "quando a Igreja se
insere no mundo sociopolítico para cooperar no surgimento de vida para os
pobres, não está se distanciando de sua missão nem fazendo algo subsidiário ou
supletivo, mas está dando testemunho de sua fé em Deus, está sendo instrumento
do Espírito, Senhor e doador da vida”. E se isso vale de alguma forma para toda
a Igreja e para todos os tempos, vale de um modo muito particular para a
situação concreta de El Salvador, marcada por uma situação extrema de injustiça
e violência.
ADITAL - Como o Papa Francisco
tem interpretado a contribuição de Romero?
FAJ - A visão que o Papa
Francisco tem de Romero está muito ligada à sua concepção e ao seu projeto de
"uma Igreja pobre e para os pobres”. Romero foi o bom pastor que deu a
vida por seu povo. A Igreja de São Salvador, sob o pastoreio de Romero,
assumiu, radicalmente, a causa dos pobres e assim tornou-se
ícone/imagem/sacramento de uma autêntica Igreja dos pobres.
Na carta que escreveu ao
arcebispo de San Salvador, por ocasião da beatificação de Romero, Francisco
afirma que Romero deve ser contado entre "os melhores filhos da Igreja”,
fala de sua missão referindo-se à escravidão-libertação do Egito (Êxodo), a
Moisés, aos profetas e a Jesus bom pastor, lembra que "seu ministério se
distinguiu por uma atenção particular aos pobres e marginalizados”, dá
"graças a Deus porque concedeu ao bispo mártir a capacidade de ver e ouvir
o sofrimento de seu povo e foi moldando seu coração para que, em seu nome, o
orientasse e o iluminasse até fazer de sua ação um exercício pleno da caridade
cristã”, e diz que em Romero podemos encontrar "força e ânimo para
construir o Reino de Deus, para comprometer-se por uma ordem social mais equitativa
e digna”. Romero é testemunha fiel de uma Igreja profética, comprometida com os
pobres e com a justiça social.
ADITAL - De que maneira a figura
e o legado de Monsenhor Romero é, hoje, utilizada pela Igreja Católica?
FAJ - Depende do grupo a que
você se refira. Há grupos que destacam seu compromisso com os pobres e com a
justiça social, e sua luta pela transformação da sociedade. Há grupos que falam
dele como homem de Igreja e de oração (o que é verdade!), mas silenciando seu
compromisso com os pobres e seu conflito com os poderosos, ou falando de sua
opção pelos pobres de maneira tão abstrata e genérica que não incomoda ninguém
– nem fede nem cheira... Muitos grupos encontram nele inspiração, ânimo e
coragem para assumir no tempo e lugar em que vivem as causas e as lutas dos
pobres e oprimidos.
Mas penso que a tendência da
grande maioria, especialmente de bispos e padres, é uma espécie de "cisma
branco”: não vai falar contra (afinal, foi, oficialmente, declarado mártir e
beato) ou até vai elogiá-lo, mas, na prática, não o leva a sério (é bonito, é
admirável, mas não é pra mim; os tempos são outros...). De uma forma ou de
outra, Romero continua incomodando, provocando, convocando... "Não há nada
mais revolucionário que o cadáver de um mártir” (P. Casaldáliga); "O
sangue dos mártires é semente de novos cristãos” (Tertuliano), sustenta a
esperança e anima a resistência aos poderes opressores...
ADITAL - Como a figura e o legado
de Monsenhor Romero são, hoje, utilizados em outras religiões e grupos sociais?
FAJ - Isso é muito relativo,
como disse anteriormente. Para muitos crentes (de outras Igrejas e de outras
religiões), Romero é um homem de Deus, uma testemunha fiel de Jesus Cristo. Nas
palavras do mártir Ellacuría: "em Dom Romero Deus passou por El Salvador”,
ele foi "um enviado de Deus para salvar seu povo”. Por irônico que pareça,
antes que se colocasse um quadro de Romero no Vaticano, a catedral anglicana de
Londres [Inglaterra] já o tinha feito desde 2000.
Para outros, que tinham/têm
outros interesses e estavam/estão ligados aos grupos do poder, era um comunista
ou, na melhor das hipóteses, um ingênuo que se deixou manipular pelos grupos de
esquerda. Com Jesus não foi diferente: para uns, ale agia pelo dedo de Deus;
para outros, agia pelo poder de Satanás... Em todo caso, seu compromisso com os
pobres, com os direitos humanos, com a justiça social expressa o que de melhor,
mais espiritual e mais santo as igrejas e religiões têm a oferecer a humanidade
e qual deve ser o ponto de encontro ou desencontro entre as igrejas e
religiões: a vida do pobre que é a glória de Deus.
ADITAL - Como o sr. avalia o
atual contexto político-religioso, no que diz respeito à concretização da
beatificação do mártir salvadorenho? Quais as diferenças do contexto do
pontificado de João Paulo II?
FAJ - Complexo e ambíguo.
Por um lado, vivemos um momento em que não se acredita muito na possibilidade
de mudança radical da sociedade. Transformação é uma palavra fora de moda. Na
melhor das hipóteses, podemos fazer pequenas reformas. E para os pobres,
bolsas... Neste contexto, a figura de Romero não tem muita força...
Por outro lado, a seca eclesial
que vivemos nos últimos 30 anos produziu uma igreja voltada para si mesma,
excessivamente devocional, sacramentalista e clerical, cada vez mais distante
dos grandes problemas do mundo atual, particularmente dos pobres e
marginalizados. Para essa Igreja, Romero diz pouco ou nada. Não por acaso
nenhum canal de televisão transmitiu a missa de beatificação de Romero no Brasil
e as poucas celebrações que aconteceram tiveram, em geral, uma participação
muito pequena – as minorias abraâmicas ou gedânicas...
E, embora Francisco represente
uma novidade (tem-se falado muito de uma nova primavera eclesial em referência
a João XXIII e ao Vaticano II), não tem, de fato, repercutido muito na dinâmica
pastoral da Igreja. "Igreja em saída” até pode ser...; para as
"periferias”, nem tanto...; para lutar pela justiça social e pela
transformação das estruturas da sociedade, menos ainda... A memória de Romero
anima e fortalece o projeto de "uma Igreja pobre e para pobres”,
particularmente, no que diz respeito ao compromisso da Igreja na luta pela
justiça social, sinal por excelência do reinado de Deus neste mundo.
ADITAL - Além do setor religioso,
a luta por justiça social de Óscar Romero ganhou a adesão de setores populares
organizados e não organizados, assim como o rechaço de setores direitistas no
interior da Igreja Católica, da oligarquia local salvadorenha, das forças
armadas e do imperialismo estadunidense. Como cada um desses setores lida,
hoje, com o legado do mártir?
FAJ - Uns querem que Romero
continue vivo e presente nas lutas do povo e fazem isso se comprometendo,
efetivamente, com as causas e lutas populares, e invocando o nome, o testemunho
e a memória perigosa e subversiva de Romero: a luta continua!!! Outros querem
que Romero seja sepultado, nem que seja nos altares...
E fazem isso dissociando a imagem
de Romero das lutas do povo, criando uma imagem espiritualista e desencarnada
de Romero – um Romero insosso, que não incomoda, que nem fede nem cheira... –
ou, simplesmente, silenciando seu nome, já que não parece bem criticar alguém
que foi, oficialmente, proclamado mártir, beato e, em breve, será proclamado
santo... O indício mais claro disso é a situação atual da Igreja de El
Salvador, particularmente, de suas instâncias de governo: "celebra”
Romero, afastando-se cada vez mais das lutas do povo...
ADITAL - Há quem acredite que a
beatificação é um reconhecimento a um personagem singular da Igreja, a um
"mártir por amor". Já outros a interpretam como um esforço da direita
religiosa global, aproveitado pela direita religiosa, midiática e política
local, para "domesticar" a figura do Monsenhor, a fazendo regredir a
uma segurança da tranquilidade e da ordem das instituições de poder. Como
podemos enxergar essas duas visões dissonantes?
FAJ - Sem dúvida nenhuma, há
um esforço para "domesticar” a imagem e a memória de Romero dentro e fora
da Igreja. Como não foi definitivamente eliminado, é preciso
"domesticá-lo”. Sua imagem/memória, como costuma acontecer com os profetas
e mártires, é sempre uma ameaça... E se faz isso de uma maneira muito sutil:
separando-o dos processos políticos e eclesiais em que estava inserido,
desvinculando-o dos movimentos e lutas populares, escolhendo algumas palavras
suas mais aparentemente religiosas, estimulando devoção a ele em vez de
continuar sua luta hoje... Mas não é fácil "domesticar” Romero. Não é
fácil afastá-lo dos pobres e das lutas por justiça social...
ADITAL - Uma terceira visão em
torno do reconhecimento de Dom Romero diz respeito à oportunidade de, a partir
da figura dele, realizar-se uma política de conciliação de classes, que permita
melhorar a estabilidade e a imagem de El Salvador, inclusive, atraindo alguns
investimentos. De que maneira isso poderia se dar?
FAJ - Esta seria uma forma
de "domesticar” sua imagem. Romero sempre foi um homem do diálogo e da
reconciliação, mas não a qualquer preço. Até porque não há verdadeira
reconciliação fundada sobre a injustiça. A verdadeira paz, como sempre
insistiu, é fruto da justiça. Sem justiça social não há paz verdadeira nem
reconciliação verdadeira nem estabilidade verdadeira. Paz, reconciliação,
unidade é tarefa, desafio, missão...
Seu fundamento é a justiça
social. Seu critério e sua medida são as maiorias populares. E a existência de
classes sociais vai ser sempre um pecado. Pobreza-riqueza é pecado porque não
significa carência ou fartura de bens, mas concentração nas mãos de uns poucos
e negação até das condições materiais básicas de sobrevivência às grandes
maiorias. Neste sentido, a chamada "conciliação” de classes é incompatível
com o evangelho do Reino que tem como critério e medida a justiça aos pobres e
oprimidos deste mundo.
ADITAL - Já uma quarta visão
parte do próprio setor progressista da Igreja, que rejeita uma mistificação de
Dom Óscar Romero, defendendo sua figura não como santificada, mas como um homem
do povo. Proclamá-lo santo seria, ainda, adequar sua práxis ao que esperaria a
Igreja, em seus mais altos âmbitos de poder. O que podemos discutir em torno
desse olhar?
FAJ - Romero é santo e não
devemos [ter] escrúpulo em reconhecer e proclamar isso. É santo porque foi fiel
ao Deus de Jesus, entregando sua vida pelos pobres e oprimidos de El Salvador.
Reconhecê-lo como santo nos compromete com as mesmas causas que ele assumiu
porque significa reconhecer que o caminho que ele seguiu conduz a Deus e nos
faz participar de mistério de santidade.
Sem dúvida, é bom e mesmo
necessário falar de Romero – sua conversão, seu serviço aos pobres, seu
ministério pastoral, sua firmeza e fidelidade proféticas, sua perseguição, seu
sofrimento, seu martírio etc. –, recordar e reproduzir suas homílias
dominicais, estampar sua imagem em camisetas e quadros e nas igrejas, cantá-lo
nas celebrações etc.
Mas o que importa mesmo é
atualizar sua missão profética em nossa vida e ação pastoral. Não basta reler
suas homílias e cartas pastorais, é necessário reler os sinais dos nossos
tempos, com o mesmo espírito evangélico com o qual Romero interpretava sua
realidade e reagia ante essa mesma realidade, denunciando, com clareza e
radicalidade, as atuais violações dos direitos humanos e favorecendo com todos
os meios disponíveis as lutas concretas atuais, pela transformação da realidade
no dinamismo do reinado do Deus de Jesus de Nazaré.
ADITAL - Podemos perceber
contradições nessas diferentes formas de conceber a beatificação de Romero?
FAJ - Creio que sim. E elas
respondem ou correspondem a interesses sociais e eclesiais muito concretos,
ainda que, muitas vezes, sutis... O próprio Romero viveu na pele essas
contradições na Igreja e na sociedade salvadorenhas. Pedro Casaldáliga o diz
muito bem com sua língua afiada de p(r)o(f)eta: "Pobre pastor glorioso,
assassinado a soldo, a dólar, a divisa. Como Jesus, por ordem do Império. Pobre
pastor glorioso, abandonado por teus próprios irmãos de Báculo e de Mesa! (As
cúrias não podiam entender-te: nenhuma sinagoga bem montada pode entender
Cristo). Tuapobreria, sim, te acompanhava, em desespero fiel, pasto e rebanho,
a um tempo, de tua missão profética. O Povo te fez santo. A hora do povo te
consagrou no Kairós. Os pobres te ensinaram a ler o Evangelho”... São
Romero de América...
ADITAL - De que forma essas
divergências podem resvalar dentro da própria Igreja Católica?
FAJ - Já em 1988, Ellacuría
afirmava a propósito da memória de Romero: "Há uma memória que é mera
recordação do passado; é uma memória morta, uma memória arquivada, uma memória
do que já não está vivo. Há outra memória que faz o passado presente, não como
mera recordação, mas como presença viva, como algo que tem ser mais presente,
tampouco é totalmente ausente porque, definitivamente, é parte da própria vida;
não da vida que foi e passou, mas da vida que continua sendo. Com Dom Romero e
sua memória, a pergunta fundamental é de que memória se trata? Uma memória
morta ou uma memória viva, a presença de um cadáver ao qual se venera ou a
presença de um ressuscitado que interpela e revigora, alenta e dirige [...]?.
Ninguém esquece Dom Romero, mas nem todos o recordam como ressuscitado e
presente”.
E muitos o querem,
definitivamente, sepultado, ainda que nos livros e/ou nos altares... Mas a
autêntica celebração da memória de Romero, unida à celebração do memorial de
Jesus Cristo, omártir por excelência, compromete-nos a todos. Através
dela, confirmamos sua vida e nos unimos a ele, fazendo nossa a sua missão,
atualizando em nossa vida a ação pastoral seu compromisso com os pobres.
Só assim podemos celebrá-lo
evangelicamente e gritar sem hipocrisia: viva São Romero!!! Pois nosso grito
não será mais que a proclamação profética de que Romero vive entre nós e vive,
precisamente, através do nosso compromisso com a causa dos pobres, com a luta
pela justiça. Viva São Romero!!! Que ele viva!!! Para a "glória de Deus”,
que é o "pobre que vive”!
Fonte: http://site.adital.com.br
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