Culto e criado no candomblé, Tiganá Santana brilha e expande atuação artística – Por Roberto Midlej
Radicado em São Paulo desde 2011,
Tiganá contrariou o desejo materno que o queria diplomata e hoje compõe em
vários idiomas.
O cantor e compositor baiano
Tiganá Santana, 32 anos, ainda adolescente, sofria pressão familiar para se
tornar diplomata. Era um desejo especialmente da mãe, a educadora Arany
Santana, atual diretora do Centro de Culturas Populares e Identitárias.
Mesmo muito novo, Tiganá já
revelava alguns dos ingredientes fundamentais ao cargo, como o vasto
conhecimento cultural e a habilidade em aprender idiomas, além de uma elegância
até na maneira de falar. Chegar ao Itamaraty parecia ser uma questão de tempo. Mas
a música acabou desviando seu caminho.
Aos 16 anos, muito hábil ao
violão, já compunha em idiomas estrangeiros, inclusive africanos. A carreira
profissional como compositor começou em 2010, com o álbum Maçalê, que tinha a
participação de artistas prestigiados, como Roberto Mendes e Virgínia
Rodrigues. Depois, vieram mais dois álbuns: The Invention of Colour (2012) e
Tempo & Magma (2015).
Outros caminhos
Desde 2011, Tiganá vive em São Paulo, buscando “caminhos longe da zona de conforto”, como observa o artista. Nos últimos quatro anos, produziu muito e ampliou sua área de atuação, tendo sido coprodutor de um álbum de Virgínia Rodrigues, Mama Kalunga (2015), e curador de uma exposição dedicada à Dona Ivone Lara, em cartaz em São Paulo.
A seguir, Tiganá Santana, que
estreia show quinta-feira na Caixa Cultural Salvador, fala sobre a sua
música, candomblé, essencial em sua formação intelectual e musical, e a
importante experiência que teve em uma residência cultural que realizou no
Senegal, em 2014.
O candomblé já foi uma religião marginalizada. A situação hoje é bem
melhor?
Seria incoerente afirmar que não
houve avanços, no que toca, minimamente, a se admitir, socialmente, que o
candomblé é uma cosmovisão possível. Há debate, estudos, experiências, arte e
perspectivas, cada vez mais diversificados, a versar sobre candomblé e outras
religiões de matrizes africanas, mais abertamente. É de se ressaltar, no
entanto, que há uma longa (talvez infindável) trilha pela frente, no que diz
respeito ao combate efetivo ao racismo - e etnocentrismo, que,
sistematicamente, reduz ao nada as ontologias, culturas, pensares, sistemas e
profundezas do outro (nesse caso, notadamente, o/a outro/a negro/a), donde se
origina a marginalização e, mesmo, a criminalização do candomblé.
Embora você reconheça a influência do candomblé na sua música, não
costuma usar cânticos religiosos em suas canções. No entanto, costumamos ouvir
canções carnavalescas e pop que usam esses cânticos. Você concorda com isso?
Num contexto sócio-histórico mais
atual, acho bem crítica e complexa essa situação. O que fizeram os afoxés, por
exemplo, se retomarmos um fio histórico de mais de um século, levando às ruas
parte do que se vivenciara nos terreiros de candomblé, é de grande força
afirmativa de um referencial negro profundo. O que fazem os maracatus, no
estabelecimento dessa ponte entre liturgia e vivência extensiva dessa liturgia
(já que o profano - da língua grega, aquilo que está fora do templo - não
condiz com um pensar inclusivo do sagrado, em que o negror do universo vasto
pode ser visitado na própria pele). Entretanto é preciso atentar para o
contexto atual, dentro do mercado e ideologia cruéis do Carnaval (não só no que
se refere a Salvador), que elegem, fatalmente, as musas duma classe média
pretensamente branca como suas representantes oficiais e não devolvem aos
afrodescendentes, em forma sequer de reconhecimento, nada do que estes sempre
forneceram ao Carnaval (hoje uma indústria indubitavelmente robusta), isto é,
seu conteúdo mais interessante e autêntico. Nesse cenário nada confiável, em
que a comunidade negra só tem valor de uso, quando se entoam cânticos sagrados
do candomblé (frequências que nos são caras), fora de contexto e de uma
situação de mínima concentração / atenção / reverência, ao contrário do que se
verifica em outras manifestações religiosas, sou levado a crer que se trata de
mais uma forte colaboração para a folclorização de manifestações negras
(reduzindo-as a corpos sem pensamento ou revigorando a assertiva clerical dos "corpos
sem alma"), revestida de suposto proselitismo e acesso de tais
manifestações a todos. Atenção... Isso é um embuste.
Como era o seu dia a dia na residência artística do Senegal, na África?
Cada dia era aprender o tempo.
Diz-se, no país, que os ocidentais têm o relógio, ao passo que os senegaleses
vivem o tempo. Conversar, pensar, beber chá, trabalhar, ver o belo e o terrível
irmanados, sentir o ritmo das coisas... Uma delas era a música. Dialogávamos
musicalmente todas as noites. Fiquei, ao longo de quatro meses e meio, na
praieira cidade de Toubab Dialaw, a ouvir o cântico-chamado às mesquitas (que
materializam a presença milenar da religião mulçumana no Senegal), vendo Gorée
no horizonte, trabalhando nas composições, supondo ler um pedaço do mundo nas
danças, diálogos, vestes, silêncios e pedras (repousadas sobre fina areia) do
Senegal.
É verdade que pensava em ser diplomata? Por que desistiu?
Sim... a princípio, desisti da
carreira diplomática. Não me sinto inclinado ou vocacionado a representar
governos. Mas reconheço que o que a minha mãe desejava, legitimamente, era, ao
menos, a desestabilização da hegemonia eurocêntrica do Itamaraty, o que é
muitíssimo válido.
Como foi sua iniciação no candomblé? Seu interesse inicial era mais
cultural ou religioso?
O candomblé é a minha realidade
desde criança. Nunca me pareceu algo diferente duma casa onde se mora, a
desvelar reentrâncias e camadas de habitar com o passar do tempo. Não há
motivos ou questões. Trata-se duma força estruturante para mim.
Muita gente classifica seu som como ‘sofisticado’. Você concorda ou
essa classificação pode elitizar seu público?
Não compro essa ideia. Acho-a
equivocada e perigosa, já que o sofisticado, no Brasil, segrega.
A sua família é muito ligada à cultura negra. Esse sempre foi um tema
presente no dia a dia de vocês? Conversavam sobre cultura negra e afirmação
racial?
Claro... Entre tantas matérias,
falávamos também desta a atingir-nos diariamente em nossa existência social. No
Ocidente (aqui entendido como cosmovisão), se você é negro, já se trata dum
senão a priori.
Por que decidiu morar em São Paulo? Hoje, mesmo com a decadência das
gravadoras, é necessário um artista independente viver em um grande centro
cultural e econômico?
Migrei para São Paulo por uma
movimentação pessoal, pelos encontros, pela possibilidade de desenhar caminhos
longe da zona de conforto de um território-cultura de toda a vida. Desconfio
(refuto) da ideia de um lugar melhor e "mais reluzente". Eu acredito
nos nossos punhos pincelando caminhadas, tropeços e superações.
Circuito Música Bahia
Show Tiganá Santana
Data: De quinta-feira (11/06) a
domingo (14/06)/ horários: às 20h, de quinta a sábado; e 19h, domingo.
Local: Caixa Cultural
Salvador, Rua Carlos Gomes, 57, Centro-Salvador/BA.
Informações: Tel. (71)
3421-4200
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