Romi Bencke, secretária-geral do CONIC, fala sobre ideologia de gênero
A ideologia de gênero é um dos
temas que está mais em voga nos últimos debates públicos a respeito da
educação.
Em entrevista à jornalista Cristina Fontenele, da Adital, a
secretária-geral do CONIC, Romi Bencke, expõe sua visão sobre o assunto e traz
uma reflexão mais profunda acerca do assunto, por vezes tratado de forma
sensacionalista pelas lideranças políticas e meios de comunicação.
“São
frequentes os relatos de crianças que pedem para seus pais mudá-las de escola
ou que, simplesmente, não querem mais frequentar a escola por causa das
discriminações que sofrem”, pondera Romi.
Sancionado em junho de 2014, o
Plano Nacional de Educação (PNE) define as diretrizes e metas a serem
alcançadas pelos próximos 10 anos. No entanto, a inclusão da ideologia de
gênero nas escolas tem gerado polêmica dentro dos grupos religiosos brasileiros.
Setores mais conservadores consideram o tema um ataque ao conceito de família,
enquanto os movimentos sociais pedem a discussão da temática para evitar mais
violência e evasão escolar. Os estados e municípios brasileiros têm até o
próximo dia 24 de junho para aprovarem leis que criam os planos estaduais (PEE)
e municipais de educação (PME).
Em nota, a Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) afirma que a ideologia de gênero
desconstrói o conceito de família, fundamentado na união entre homem e mulher,
e que a abordagem do assunto pela prática pedagógica trará "consequências
desastrosas” para a vida das crianças. O documento destaca que é "grave”
incluir a ideologia de gênero nos planos de educação sem discutir o assunto com
pais, educadores e sociedade civil.
Já para a organização Católicas
pelo Direito de Decidir (CDD), a violência de gênero impede que as crianças
desenvolvam seu potencial intelectual. Em boletim, a entidade afirma
que a população LGBTI [Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Intersexuais]
enfrenta uma situação "gravíssima” pelo não acesso à escola e pela evasão
escolar. "Além de sofrerem discriminação e violência nas ruas e, muitas
vezes, na família, são alvo de violência dentro das escolas”.
A Iniciativa De Olho nos Planos,
que reúne entidades ligadas à educação, divulgou uma nota pública em
defesa da promoção igualdade de gênero nos planos de educação. A entidade
considera "extremamente grave” as manifestações de "intolerância e
proselitismo religioso nos processos públicos”, bem como a atuação de
determinados grupos que vêm propagando "preconceitos e desinformação”, inviabilizando
o debate público.
Há estudos que indicam que a
violência de gênero em instituições acadêmicas pode gerar um aumento do
absenteísmo, fraco desempenho, desistência escolar, baixa autoestima e até
depressão.
Em entrevista à Adital, a pastora
Romi Bencke, secretária-geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil
(CONIC), explica o conceito de ideologia de gênero e qual a importância da
discussão do assunto dentro das escolas. Ela comenta ainda sobre as relações de
poder da família patriarcal e a importância de se recuperar o processo
civilizatório no Brasil.
Adital: Em que consiste a ideologia de gênero?
Romi Bencke: Importante é
recuperar o próprio conceito de ideologia, que tem a ver com ideias e crenças
que integram a visão de mundo de grupos sociais ou classe social. Muito comum,
em tempos não tão distantes, era utilizar a expressão ideologia burguesa ou ideologia
de classes para problematizar a dominação exercida, por meio de valores e
ideias do grupo econômica e politicamente dominante sobre os trabalhadores e
trabalhadoras.
A perspectiva de gênero tem,
exatamente, a função de problematizar as construções sociais de ser homem e ser
mulher, além de chamar a atenção para aspectos das relações sociais, que buscam
manter a dominação de um gênero sobre o outro. Gênero é um conceito. Ele também
é um instrumento metodológico, que auxilia na análise das formas como são estabelecidas
as relações e os papéis sociais entre homens e mulheres. As diferenças entre
homens e mulheres não são apenas biológicas. Elas também são sociais,
econômicas e políticas, considerando que as mulheres quase não ocupam espaços
de poder, basta resgatar a decisão do Congresso Nacional que, no dia 16 de
junho último, rejeitou a reserva de cotas para mulheres no Parlamento.
Há alguns anos, nos trabalhos com
grupos populares, era muito comum abordar as diferenças de gênero através da
realização de dinâmicas simples, do tipo convidar o grupo para falar dos papéis
desempenhados por homens e mulheres na família. A conversa rumava também para
as diferenças na educação entre meninos e meninas. Os meninos ensinados a serem
fortes e autônomos e as meninas frágeis e dependentes. A partir do conceito de
gênero, passamos a ler a bíblia com outros olhos, recuperando as mulheres
presentes nos diferentes relatos bíblicos e os papéis desempenhados por elas.
No âmbito da Teologia, esse conceito é muito importante para as mulheres
teólogas. A teologia mesma passa a ser lida e elaborada de outra forma a partir
desse conceito. Acredito que muitos participaram dessas discussões.
A sociedade é dinâmica,
rapidamente ela se tornou mais plural. O conceito de gênero torna-se cada vez
mais importante e complexo, para chamar a atenção para as rupturas entre noção
biológica de sexo e noção de gênero enquanto construção social de ser homem
e/ou mulher. É um conceito que nasceu no movimento feminista. É um conceito que
incomoda porque questiona e problematiza as relações de poder.
Adital: Qual a importância dessa discussão dentro das escolas?
RB: O Brasil é um dos países
mais violentos do mundo. A ONU Mulheres divulgou uma Nota Pública condenando o
estupro coletivo ocorrido em Castelo, Piauí. A Nota destaca que ocorrem, por
ano, no Brasil, 50 mil estupros e 5 mil assassinatos de mulheres. Entre os anos
de 1980 e 2011, a taxa de assassinatos de mulheres dobrou. No Brasil, pode-se
dizer que uma mulher é assassinada a cada duas horas, a maioria delas por
homens com os quais elas têm relações íntimas. Somos o sétimo país com as
maiores taxas de feminicídios. A violência contra LGBTs segue no mesmo rumo, ou
seja, acontece em casa. Os agressores são conhecidos das vítimas. Os números
são igualmente altos. No ano de 2013, foram 321 assassinatos. O Brasil é
campeão mundial em crimes homo-transfóbicos, 40% de assassinatos de travestis,
ocorridos no mundo, foram aqui, no Brasil. Isso sem falar nas humilhações,
hostilidades, etc.
Acho que isso já explica a
importância de se levantar essas discussões nas escolas. Temos instrumentos
importantes para coibirem e penalizarem o assassinato de mulheres, a Lei Maria
da Penha e a Lei do Feminicídio. Mas, juntamente com as leis, precisamos de uma
profunda mudança cultural. Esses números deveriam, no mínimo, gerar
desconforto. Só que são violências naturalizadas. Elas não chocam. Ao
contrário, muitos comentários acabam culpabilizando as vítimas. Será que a vida
dessas pessoas não tem valor? Uma vale mais e a outra menos?
A escola tem a função fundamental
de formação das pessoas. Não uma formação instrumentalizadora, do tipo preparar
para o concurso público ou para um bom emprego. Precisamos de uma formação
capaz de humanizar. Precisamos, urgentemente, recuperar um processo
civilizatório no Brasil!
Adital: Em entrevistas, a senhora comentou que violência e a evasão
escolar são consequências da discriminação de gênero. Como percebe o tratamento
dessa situação pelas escolas?
RB: A evasão escolar tem
múltiplas causas. Os casos de bullying, por exemplo, têm a ver com não saber
lidar com as diferenças, neste caso, não só de gênero, mas também racial,
física, entre outras. O relato da mãe do menino Rafael Barbosa de Melo, de
Cariacica, que foi assassinado a pedradas, é muito impactante. Ela falou que
implicavam com o jeito do menino ser.
A menina Kailane Campos, que foi
apedrejada ao sair de um culto do Candomblé, faz outro relato impactante: medo
de sair na rua. Isso deveria provocar uma reflexão sobre o que estamos fazendo
em nome de Deus, que está enjaulado. O que é contraditório, pois o Espírito de
Deus é livre e, muitas vezes, nos provoca e desestabiliza.
São frequentes os relatos de
crianças que pedem para seus pais mudá-las de escola ou que, simplesmente, não
querem mais frequentar a escola por causa das discriminações que sofrem.
Relatos de crianças que são de religiões de matriz africana mostram que, em
função dos preconceitos, preferem não frequentar mais as aulas. Da mesma forma,
crianças e jovens obesos ou com algum tipo de deficiência.
Adital: Como avalia o posicionamento das igrejas cristãs mais
conservadoras sobre as discussões de gênero?
RB: Sou da opinião de que o
conservadorismo está presente em toda a sociedade e, por isso, em todas as
Igrejas. Acho que essa é uma primeira constatação a ser feita. A questão é como
as Igrejas lidam com isso. Algumas conseguem promover espaços de reflexão e diálogo
sobre as diferenças. Cito o caso da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil que,
desde o ano passado, tem desenvolvido uma série de reflexões sobre modelos de
família e sexualidades. Estão, agora, na segunda etapa dessas jornadas de
reflexão nos grupos comunitários.
A Igreja Evangélica de Confissão
Luterana no Brasil coloca entre os seus valores: dignidade, liberdade,
gratuidade. Na diversidade estão: diversidade de gênero, espiritualidade,
diaconia, etnia, família, entre outras. A diversidade integra uma das formas da
Igreja viver seu testemunho. Além disso, no âmbito nacional da Igreja, temos
uma Coordenação de Gênero, Gerações e Etnia. A Fundação Luterana de Diaconia
tem um projeto chamado "Lar nem tão doce lar”, que reproduz um ambiente
doméstico em que a violência está presente. É muito interessante. As pessoas
começam a debaterem os temas de tensão dentro do ambiente familiar.
Na Igreja Católica Romana, muitas
pastorais sociais promovem espaços importantes de reflexão sobre o tema de
gênero. As Comunidades Eclesiais de Base têm uma preocupação legítima em
valorizarem as diferenças.
No âmbito ecumênico, lembro da
Campanha da Koinonia "O amor lança fora todo o medo”, que tem como
objetivo desconstituir os preconceitos contra mulheres, LGBTs e outros grupos.
O Centro de Estudos Bíblicos promove a leitura popular da bíblia que busca
iluminar a realidade a partir da leitura bíblica. Com isso, fazem uma análise
interessante sobre valores religiosos, que contribuem para legitimar as muitas
desigualdades, inclusive, de gênero. Mas também recuperam valores religiosos
que promovem o convívio entre diferentes.
Importante dizer que muitos, no
âmbito dessas Igrejas e grupos ecumênicos, criticam, reclamam dessas
iniciativas, mas o espaço de reflexão não é suprimido. Isso é importante. Não
se pode perder a capacidade de diálogo.
Adital: Alguns grupos religiosos comentam que a discussão sobre gênero
nas escolas poderia submeter crianças e jovens a um esvaziamento de valores.
Como avalia esse posicionamento?
RB: Não sei como isso pode
acontecer. O que esvazia valores são as relações violentas e de discriminação a
que as crianças e jovens estão expostos. O que ameaça mais uma criança: as
agressões, a violência ou uma boa conversa e uma boa história? As crianças são
muito perspicazes, inteligentes.
Adital: Por que alguns grupos entendem a discussão de gênero como uma
ameaça à família?
Creio que isso ocorre porque não
conseguem lidar com essas mudanças. Sentem-se inseguros, desestabilizados. Em
tempos de rápidas transformações, crescem os movimentos de reafirmação de
certezas. É uma reação. Por isso, sempre de novo, se reafirma o modelo de
família patriarcal, construído com relações de poder e de controle. Há a
necessidade de restaurar o que foi aparentemente corrompido.
Acho que grande ameaça à família
é a violência entre quatro paredes. Do pai que bate na mãe, do familiar que
assedia a menina ou o menino.
Adital: Deseja acrescentar algo mais?
RB: Se olharmos para o Jesus
histórico, percebemos que ele foi extremamente inconformado com o seu tempo e
nunca deixou de expressar seus inconformismos. O que teria acontecido com a
mulher que estava para ser apedrejada se Jesus não tivesse questionado os
"cuidadores dos bons costumes” daquela época? Ela teria sido vítima da
violência patriarcal. Teria morrido! A fé deve levar a posturas de inquietação.
Precisamos reaprender a exercitar a compaixão e a misericórdia. Libertarmo-nos
das nossas certezas engessadas. Não há fé sem dúvida. Uma é irmã da outra.
Crescermos com isso.
Fonte: http://www.conic.org.br
Comentários