Estudo analisa a pluralidade do espiritismo kardecista - Por Valéria Dias
Ao contrário do catolicismo e do
protestantismo, o espiritismo kardecista é uma religião sem corpo eclesiástico
definido.
Para entender as formas de autoridade existentes na doutrina, a
socióloga Célia da Graça Arribas reconstruiu a história dessa religião ao longo
do século 20 a fim de compor o cenário e o elenco espíritas, e como esses
personagens atuaram no período.
Os dados estão em sua pesquisa de doutorado defendida
na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Quase 4
milhões de brasileiros se declararam espíritas no último censo do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
“Apesar de não ter um corpo
eclesiástico definido, algumas pessoas dentro da doutrina têm o poder de ditar
regras, normas e práticas que estão, muitas vezes, em contraste com as ideias
originais de Allan Kardec, o decodificador da doutrina espírita”, explica a
socióloga.
Célia pesquisou jornais, livros e
periódicos espíritas do século 20, principalmente entre 1920 e 1960, a fim de
reconstituir historicamente o cenário, e identificar os principais atores que
influenciaram a religião, assim como o surgimento das federações, uniões e
ligas. A partir daí a socióloga identificou três tipos de “autoridades” do
espiritismo kardecista: a institucional (burocrático-legal), a carismática
(mediúnica) e a intelectual.
“Meu foco recaiu sobretudo em cima da autoridade
intelectual: como ela funciona e de como e onde angaria legitimidade. Para
melhor explicar e compreendê-la, elegi os nomes de José Herculano Pires e
Edgard Armond como exemplos a serem estudados, de modo que eu pudesse elucidar
de forma mais clara a minha caracterização de autoridade intelectual”,
esclarece.
José Herculano Pires (1914-1979)
foi professor, filósofo e pedagogo, e autor de mais de 80 livros sobre
espiritismo. Suas ideias são mais racionalistas, voltadas para o estudo e
análise sistemática das obras de Allan Kardec.
Já o militar Edgar Armond
(1894-1982) escreveu mais de 30 livros espíritas e acabou por incorporar, no
espiritismo kardecista, elementos encontrados em religiões orientais, como o
hinduísmo. Com base em suas ideias, muitas casas espíritas adicionaram em suas
práticas elementos não citados textualmente nas obras de Kardec, como os
chacras (centros energéticos do corpo humano), a cromoterapia (tratamento de
doenças com o uso de cores), e o uso da palavra carma (consequência vivenciada
nos dias atuais de atos praticados em outras encarnações).
Diversificação
A pesquisadora estudou a trajetória de vida de Herculano Pires e Armond antes e depois da conversão ao espiritismo, e os livros dos dois autores. “Pouco a pouco pude conhecer as inovações práticas, ritualísticas e doutrinárias que cada qual empreendeu na doutrina, o que fez com que ambos ajudassem a compor um quadro cada vez mais diversificado e plural de práticas e concepções, todas elas adjetivadas de espíritas”.
Na rotina das casas espíritas,
essa diversificação pode ser observada, por exemplo, na aplicação de passes. Em
centros mais ligados às ideias de Herculano Pires, o passe é aplicado apenas
com a imposição das mãos sobre a cabeça da pessoa. Já nos centros mais
influenciados pelas ideias de Armond, a aplicação é sobre os chacras. “Armond,
inclusive, escreveu livros com a sistematização dos tipos de passes e os
movimentos que o passista deve fazer durante a prática”, informa.
Apesar da diversidade de práticas
e concepções, a socióloga aponta que, em comum, essas correntes compartilham a
crença em um Deus único; a reencarnação; a existência dos espíritos e a
comunicação com eles; a importância dos livros de Kardec; além da realização
direta ou indireta de obras assistenciais; assim como a recomendação de se
fazer o Evangelho no Lar (reunião familiar semanal para leitura de textos
evangélicos). “Não encontrei nenhum centro espírita que não ofereça algum tipo
de passe”, diz.
Como autoridade institucional,
Célia aponta dois nomes: o do engenheiro e jornalista Guilhon Ribeiro e do
farmacêutico Antonio Wantuil de Freitas. Ambos foram presidentes da Federação
Espírita Brasileira (FEB), fundada em 1884 e, segundo a pesquisadora, são os
grandes responsáveis pela consolidação do espiritismo do ponto de vista
institucional.
Como autoridade carismática, a
socióloga cita o médium Chico Xavier (1910-2002), que ajudou a expandir o
espiritismo para além dos praticantes da religião. “Ele psicografou mais de 450
livros, ajudou a popularizar a doutrina e teve importância fundamental ao
‘traduzir’ as obras de Kardec em forma de romances. E foi por uma orientação do
próprio Chico que o Evangelho no Lar passou a ser recomendado”, destaca.
Outra
autoridade carismática é o médium Divaldo Pereira Franco (1927), que está em
plena atividade de divulgação da doutrina, tanto no Brasil como no exterior, e
já psicografou mais de 250 livros.
A pesquisa: No princípio era
o verbo: espíritas e espiritismos na modernidade religiosa brasileira teve
orientação do professor José Reginaldo Prandi e foi defendida em 15 de agosto
de 2014.
Fonte: http://www.usp.br
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