Religião na Cidade - Por Paulo Mendes Pinto
Do "professor", que é quem
“professa”, transformando-se essa profissão em missão; que se transforma, se
for um bom professor, em "mestre", até com "discípulos", qual líder religioso;
à "cadeira" que ele lecciona e que corresponde a um lugar na hierarquia, a "cátedra", o lugar onde tem assento esse que “professou”, seja ele ou o bispo
que reside e se senta na "catedral"; passando pelo que profere esse digno "mestre" na sua alocução máxima, a "oração" de sapiensia, nada parece escapar à
herança religiosa no universo escolar.
Contudo, e como as palavras nos
escapam pelos ouvidos sem que delas demos conta, hoje olhamos para o actual
modelo escolar como se ele tivesse todo o tempo do mundo, sendo que, nessa sua
forma actual, ele foi inventado há cerca de dois séculos, um muito-pouco-tempo
na espessura da nossa civilização, tendo ido buscar ao modelo cristão o léxico
que hoje em nada nos soa religioso.
É que, de facto, as grandes estruturas de
pensamento movem-se numa diacronia que não assenta no correr rápido dos anos ou
das décadas, mas sim nos séculos longos em que as palavras das línguas vão
ganhando matizes e recriando significados. Essa é a velocidade das estruturas
de pensamento, das mentalidades.
E é nessa velocidade que a
escola, por mais laica que ela nos pareça, é recorrentemente um lugar desejado
pelo universo das religiões. E é-o pelo simples facto de que as religiões são
mensagens e as mensagens são para transmitir, para resultar em ensinamento.
Religião é comunicação e, por isso, é ensino.
E neste coincidente sentido, o da
escola e o do religioso, o espaço da comunicação de saberes é o espaço, por
excelência, para que se percebam todas as tensões e todas as coexistências
entre ambos.
A escola é, oficializada e tornada obrigatória, o mais importante
normativador da nossa civilização. O que se veicula na escola é aquilo que
enquanto colectivo achamos ser o fundamental da nossa identidade e da formação
que queremos dar às futuras gerações. Sim, é como se de um “saber oficial” se
tratasse.
Sendo o terreno por excelência da
transmissão de conhecimento e de identidade, a religião não poderia estar fora
dele. E nunca o estaria porque muitas temáticas tratadas na sala de aula se
cruzam com aspectos religiosos. Mas cruzam-se ainda porque herdámos uma
tradição muito forte de as religiões terem, de facto, um espaço escolar de
ensino.
Assim se tem passado em Portugal
ao longo do período democrático, não se tendo entrado em ruptura com a herança
do Estado Novo. A uma disciplina obrigatória formulada e leccionada pela Igreja
Católica, o regime democrático apenas acrescentou a sua não obrigatoriedade,
primeiro, e estendeu, depois, essa possibilidade escolarizada a outras
confissões.
De forma bem diferente, muito da
restante Europa seguiu outros caminhos na viragem de século. Não só a erosão
das identidades religiosas tradicionais levou a que deixasse de fazer sentido
um monolitismo religioso na escola, como a própria diversidade crescente do
tecido social fortaleceu a necessidade de se abandonar um paradigma de claro
favorecimento das confissões que conseguiam ter meios para tomar conta dessa
prorrogativa de ter um espaço lectivo na escola dedicado aos seus crentes.
A multiplicidade religiosa que se
generalizou na Europa levou a que se equacionasse um campo de saberes plurais
que ajudassem os alunos a compreender o seu mundo e não apenas a fortalecer a
sua identidade religiosa. Mais, o modelo confessional nem sequer já é
significativamente válido para as religiões e confissões maioritárias na medida
em que se tornaram diminutos os valores de adesão a essas turmas de natureza
confessional, situação que hoje se passa em Portugal.
A esta transformação da realidade
interna se juntou o olhar internacional e os desafios que a política e os média
constantemente lançam sobre os nossos jovens através de um crescendo de tensão
em torno do radicalismo religioso e do terrorismo. A religião é hoje
omnipresente nas produções televisivas, trate-se de ficção ou de documentário
ou jornalismo.
Numa sociedade plural, livre e
que fomente o respeito pela diferença, possibilitando aos seus cidadãos uma
tomada de decisão assente em visões de rigor, implica um regresso à escola.
Longe do modelo português, hoje muitos países desenvolveram modelos de ensino
em que a diversidade religiosa e as múltiplas dimensões da religião e da
espiritualidade são levados aos alunos sem sentido confessional, mas como parte
de uma formação integral de cidadania.
Seguindo esta necessidade cada
vez mais consensual na nossa sociedade, acaba de lançar um projecto pedagógico
e cívico destinado a fornecer ao universo escolar materiais e debates que
enriqueçam os nossos educandos com uma visão plural e complexa desse fenómeno
sem o qual é impossível compreender o nosso mundo, seja-se religioso ou não.
Parte fundamental desse projecto
é a formulação de uma disciplina sobre "Religiões do Mundo" que será já no
próximo ano lectivo, levada à sala de aula na escola Os Aprendizes, em Cascais.
Com esta disciplina pretende-se, não apenas fornecer aos alunos os elementos,
os conhecimentos, sobre religião, mas também abrir as portas da sua vida às
dimensões de espiritualidade que tão afastadas se encontram das prioridades num
mundo onde os valores parecem plenamente secundarizados.
E, exactamente, neste sentido,
mais que “dar matéria”, mais que uma História das Religiões, esta cadeira de "Religiões do Mundo" irá ajudar os educandos a compreender as dimensões
interiores do fenómeno religioso enquanto dimensão essencial na definição do
Homem na maioria das culturas, fomentando um lado experiencial no contacto com
as religiões e as espiritualidades. Sim, porque conhecer as religiões, num
sentido positivo, não basta. É necessário compreender o valor das suas
dimensões espirituais, a chave para se aceder ao que, de facto, distingue a
religião de outra qualquer actividade de pendor meramente social.
Neste sentido, a transversalidade
deve ser o principal elemento desta equação. Todos os jovens carecem de
formação sobre religiões e espiritualidades. Sejam de famílias religiosas, ou
não. Porque mesmo para os jovens com formação e prática religiosa, um âmbito
disciplinar como o apresentado leva a um melhor conhecimento das
especificidades da sua fé e a um respeito pelas fés diferentes.
Não pode ser de simples saber
livresco que se fundamente este campo disciplinar. Ao falar de Liberdade,
Fernando Pessoa dizia sobre Jesus que não “consta que tivesse biblioteca”.
É verdadeiramente aqui que reside o cerne: não é só com livros que se consegue
conhecer. A palavra francesa ajuda-nos a perceber melhor o que está em jogo:
connaître = con+naitre, “nascer com”. Só se conhece se, de alguma forma, se
nascer com aquele que se pretende conhecer.
Neste final de ano lectivo,
esperamos que este seja um primeiro passo, dado de forma inovadora e pioneira,
para que aos nossos alunos chegue um conhecimento isento, fomentado no respeito
pelo outro, e que nos permita ter uma cidadania mais activa e esclarecida. Que mais escolas se juntem a este
projecto-piloto!
Paulo Mendes Pinto, director
da área de Ciência das Religiões na Universidade Lusófona.
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