Muçulmanos estão entre as principais vítimas de intolerância religiosa no Rio de Janeiro - Por Flávia Villela
Insultos, cusparadas, pedradas e
ameaças de morte são algumas das denúncias de agressões contra muçulmanos no
Rio de Janeiro nos últimos meses.
Depois dos adeptos das religiões
de matriz africana, os seguidores do islã são os que mais sofrem com a
intolerância religiosa no estado, segundo o Centro de Promoção da Liberdade
Religiosa e Direitos Humanos da Secretaria de Direitos Humanos e Assistência
Social. Desde Janeiro, pelo menos uma denúncia é recebida mensalmente. A estimativa é que haja 2 mil muçulmanos vivendo no Rio de Janeiro.
Os números destoam dos demais
estados do Brasil. Apenas cinco denúncias de Islamofobia foram feitas ao Disque
100 da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. As mulheres,
mais facilmente identificadas nas ruas pelo uso do véu, são as principais
vítimas de violência. A aeromoça Ana Cláudia
Mascarenhas, 43 anos, levou um soco de um homem após ser xingada de terrorista
em pleno centro da cidade.
“Fui fazer exame médico e notei que uma pessoa
me seguia. Ele parou atrás de mim, começou a me xingar e a dizer que odiava
terroristas. Fiquei quieta, pois não sou terrorista. Quando o sinal abriu, ele
me puxou pelo braço, repetiu que odiava terrorista e me deu um soco
no rosto. Saí correndo como louca, sem olhar para trás. Se às 7h, com toda
aquela gente na rua, ele fez isso, não gosto de imaginar o que faria se eu
reagisse ou respondesse”, afirmou Ana Cláudia.
Um dos casos denunciados ao
Centro de Promoção da Liberdade Religiosa e Direitos Humanos foi um trote
universitário com uma estudante muçulmana. Colocaram fogo no hijab [véu]
da menina, que acabou tendo o couro cabeludo queimado.
A coordenadora do centro, Lorrama
Machado, lamentou que, durante um curso de formação para peritos criminais da
Polícia Civil sobre o tema, um agente tivesse comentado que pessoas como a
menina mereciam morrer.
“A equipe ficou em choque. Por
sorte, outros colegas do perito o contestaram e vimos que era uma posição
isolada. Mas esse policial, agora formado, pode um dia ser responsável por
analisar um crime contra um muçulmano”, disse Lorrama. “Que tipo de laudo ele
dará com essa opinião sobre muçulmanos? Por isso é importante informar e
conscientizar”, acrescentou.
A Lei 7.716, de 1989, protege
fiéis de todas as crenças, prevendo cadeia para quem cometer crimes de
intolerância religiosa. De acordo com o assessor de Comunicação da Sociedade
Beneficente Muçulmana do Rio de Janeiro (SBMRJ), Fernando Celino, muitos
policiais não são treinados para identificar crimes de intolerância religiosa.
Segundo Celino, uma muçulmana que
frequentava a mesquita já fez dois boletins de ocorrência contra o vizinho que
a ameaçou de morte mais de uma vez, mas os policiais tratam o caso como briga
de vizinho.
"Por isso, o assédio continua. Há muitas delegacias que
tipificam um caso desse de forma errada, como calúnia, injúria ou qualquer
outra coisa, sem dar a real importância, tratando como um crime menor”.
Fernando Celino informou que
outro caso de intolerância ocorreu no início do ano, quando um motorista de
ônibus expulsou a passageira, dizendo que não transportava mulher-bomba. Também
neste ano, uma professora de inglês teve o emprego ameaçado por pais de alunos
que pediram ao dono do curso para que a demitisse, pois não queriam
"mulher de Bin Laden" dando aulas para os filhos.
“Outra muçulmana foi tema de
reunião de condomínio. Os moradores queriam a saída dela e de sua família do
prédio por medo de que escondessem bombas. Somos um estado muito acolhedor
quando o assunto é samba e turismo, mas não aceitamos o novo”, criticou
Lorrama.
O fato mais recente foi de apedrejamento, seguido de cusparadas a uma
moça em Nova Iguaçu, Baixada Fluminense. A atendente de telemarketing,
Ana Carolinha Jimenez, 22 anos, também passou pela humilhação de ser atingida
por uma cusparada. “Estava no ponto de ônibus. Alguns jovens no ônibus
começaram a falar bobagem e a me xingar. Quando o ônibus partiu, eles cuspiram.
Senti uns respingos, limpei e continuei olhando para frente.”
Se as agressões físicas não são
rotina, o desrespeito é diário. “Ouço risadas pelo menos uma vez por dia. As
pessoas apontam, se cutucam. A maioria acha que nem somos brasileiras. A
primeira coisa que falam é: 'volta para seu país'”, disse Ana Cláudia. De acordo com a coordenadora do
centro, mais de 90% das vítimas são brasileiras natas, que se converteram ao
islamismo na idade adulta.
Mercado de trabalho
O preconceito também é um
obstáculo para as mulheres no mercado de trabalho. Ana Carolina passou por
cinco entrevistas e em todas a retirada do véu durante o trabalho era
pré-condição para a contratação.
“Fiz vários cursos de especialização em
secretariado executivo e sou fluente em inglês. As pessoas gostam do meu
currículo, mas querem que eu tire o véu, mesmo eu afirmando que ele não
atrapalha meu desempenho. Para mim, é como seu tivesse de trabalhar de sutiã. O
véu não é um acessório para a cabeça”.
Após mais de 100 currículos
distribuídos e um anos depois, ela conseguiu emprego como assistente de telemarketing.
“Para mim, é frustrante, mas sou grata a essa oportunidade, pois estava
precisando”.
Ana Cláudia trabalha sem o véu a
contragosto. Como está na empresa há muitos anos e essa é a principal renda da
família, não tem como abdicar do emprego. “A vestimenta faz parte da religião.
Até tentei levar isso adiante, mas sou a única muçulmana na empresa. Saio do
avião e coloco o véu. Para mim é muito difícil”.
Dossiê
As denúncias se intensificaram em
2015, de tal modo que, em julho, o centro encaminou aos ministérios Públicos
federal e estadual um dossiê elaborado pela SBMRJ sobre casos de islamofobia
pela internet. O documento também foi entregue à Polícia Civil e Delegacia de
Crimes de Internet e à Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. A
Polícia Civil e o Ministério Público já começaram a investigar o caso.
No documento, são denunciados
páginas e vídeos na internet que atacam a religião islâmica com inverdades
sobre Maomé, principal profeta do Islã. Há fotos de muçulmanos brasileiros,
acusados de terroristas. Ainda segundo o dossiê, a maioria das páginas afirma
que o terrorismo é algo intrínseco ao islã.
Conforme o dossiê, em uma das
páginas, a circuncisão é descrita como mutilação imposta pelo islã às
mulheres, "quando, na verdade, é recomendada pela religião aos
homens". Em outra página, há uma referência inexistente no Alcorão de que
o islã permite o estupro. Segundo a SBMRJ, esse tipo de iniciativa contribui
para que mulheres muçulmanas sejam agredidas.
Coordenador de Diversidade
Religiosa do governo federal, Alexandre Brasil Fonseca informou que o
Ministério da Justiça, em pareceria com outros ministérios e órgãos do governo,
já se mobilizou para apurar as denúncias.
“O caso está sendo investigado
por um grupo de trabalho de combate a crimes de internet. Como Estado, é
importante garantir essa atividade religiosa, assim como combater as ações
de preconceito e discriminação, que, infelizmente, temos notificado”. Fonseca
destacou que cerca de 35 mil pessoas se declararam seguidores do islamismo no
Censo de 2010.
O governo do Rio de Janeiro lançará uma
campanha até o fim do ano para combater atos de intolerância e violência contra
muçulmanos. A campanha é fruto de uma articulação entre as secretarias de
Direitos Humanos e Assistência Social e das Mulheres e do Trabalho.
“Prezamos muito a paz, a
confraternização e o bom relacionamento com as pessoas, ao contrário do que
dizem do islã. Respeitamos todos, mas não somos respeitados”, disse a jovem Ana
Carolina.
"Temos uma ótima relação com
todas as religiões. E temos um interesse em comum, que é o direito
constitucional à liberdade de crença. Não pedimos nada além disso",
concluiu Fernando Celino.
Fonte: http://www.ebc.com.br
Comentários