Desenterrada em Cabo Verde a igreja mais antiga dos trópicos
“Quem visita a Cidade Velha pela
primeira vez pode ser perdoado por não reconhecer nesta povoação aprazivelmente
ensonada o grande entreposto comercial que foi em tempos, no cruzamento das
rotas do tráfico de escravos do Atlântico”.
É assim que começa o relato, que
deverá ser publicado em breve na revista Current World Archaeology, das
escavações arqueológicas lideradas em Cabo Verde por dois cientistas da
Universidade de Cambridge (Reino Unido).
Em colaboração com colegas
cabo-verdianos e portugueses, estudantes e trabalhadores locais, Marie Louise
Stig Sørensen e Christopher Evans têm trabalhado, desde 2007, não só para
resgatar do esquecimento a mais antiga construção religiosa europeia a ser erguida
nos trópicos, como também parte do passado histórico da população
cabo-verdiana.
Quando as ilhas de Cabo Verde
foram descobertas pelos portugueses em 1456, décadas antes de Cristóvão Colombo
descobrir a América, não estavam habitadas. As dez pequenas ilhas que compõem o
arquipélago são feitas de rocha vulcânica e até àquela altura não havia lá nem
árvores, nem pessoas, nem mamíferos. “É um sítio onde toda a gente, e também a
maioria das plantas e dos animais, vieram de fora”, salientam Sørensen e Evans
no seu relato.
Mas aquilo que começou por ser um
local estratégico para o comércio com a África subsariana transformou-se, no
século XVI, num centro global de comércio de escravos africanos, principalmente
com destino à nova colónia portuguesa do Brasil. “Estas ilhas foram um ponto de
partida para a primeira vaga de globalização, integralmente baseada no tráfico
de escravos”, diz Sørensen, citada num comunicado da Universidade de Cambridge.
Os portugueses transformaram as
ilhas num dos principais centros do tráfico transatlântico de escravos,
trazendo com eles plantas cultiváveis, animais domésticos e pessoas,
comerciantes, missionários e “milhares e milhares” de escravos. Os escravos
eram seleccionados e vendidos antes de serem despachados para as plantações
espalhadas por todo o mundo atlântico.
Uma vez que o arquipélago de Cabo
Verde se situa mais ou menos a meio caminho entre a costa de África Ocidental e
o Brasil, “a descoberta do Brasil e o estabelecimento de plantações ali fez
explodir o comércio que passava por Cabo Verde”, lê-se no comunicado.
A Cidade Velha, instalada num
pequeno vale fluvial pautado por campos de cana-de-açúcar e palmeiras, foi a
primeira cidade que Portugal fundou em África, na sua aventura dos
Descobrimentos. E durante 300 anos, foi não só a capital de Cabo Verde, como
também chegou a ser “a segunda cidade mais rica do império português”, diz
ainda o comunicado. A Cidade Velha foi declarada Património Mundial da
Humanidade pela UNESCO em 2009. O seu centro histórico é uma conhecida atracção
turística.
Em 2006, Sørensen e Evans foram
convidados pela Universidade Jean Piaget de Cabo Verde a realizar escavações na
Cidade Velha com o apoio do Ministério da Cultura daquele país. O principal
objectivo consistia em localizar a Capela da Nossa Senhora da Conceição, que se
pensava ser a igreja original da Cidade Velha e, como tal, candidata a ser uma
das primeiras igrejas cristãs dos trópicos, explicam ainda os dois cientistas
no seu texto ainda por publicar.
“Konstantin Richter, historiador
de arquitectura [da Universidade Jean Piaget] tinha reparado numa plataforma
com argamassa que batia certo com o mapa que indicava a localização da igreja”,
disse Evans ao PÚBLICO num email.
“A seguir, localizámos a fachada da
igreja e realizámos duas campanhas de escavações preliminares. E concluímos que
sim, que tínhamos encontrado a igreja".
Agora, os cientistas, que
beneficiaram entretanto do “empurrão” dado pela UNESCO, deram por acabada a
escavação e a conservação do monumento, que deverá passar a poder ser visitado
pelo público. Os primeiros vestígios da Capela
da Nossa Senhora da Conceição remontam à década de 1470, com uma construção de
maiores dimensões datada de 1500.
Um monumento notável
“Conseguimos recuperar a
totalidade da planta de superfície da igreja, incluindo a sacristia, a capela
lateral e a varanda lateral e agora temos um monumento realmente notável”, diz
ainda Evans, citado pelo já referido comunicado. “Obviamente construída por
volta de 1500, a sua porção mais complicada é o coro situado na extremidade
oriental, onde se erguia o altar-mor, e que foi sofrendo múltiplas
reconstruções devido aos estragos causados pelas cheias sazonais”, salienta
Evans.
Para além da igreja, os
arqueólogos descobriram várias lápides de dignitários locais da época. Uma
delas é a de Fernão Fiel de Lugo, traficante de escravos e tesoureiro da cidade
entre 1542 e 1557. Isso faz dizer a Manuel Monteiro de Pina, presidente da
Câmara da Cidade Velha (também citado no comunicado):
“Este é um lugar de imenso
valor cultural e histórico, [e] esta escavação revelou túmulos e sepulturas de
pessoas que apenas conhecíamos através dos livros de História e que sempre
pensámos poderiam ser ficcionais”.
Os cientistas também descobriram
um cemitério, cavado no chão da igreja, onde estimam que mais de um milhar de
pessoas foi enterrado antes de 1525, uma autêntica “cápsula do tempo” dos
primeiros 50 anos de vida colonial na ilha.
Já foram realizadas análises,
salienta o comunicado da Universidade de Cambridge, que indicam que cerca de
metade eram corpos de africanos e que o resto dos sepultados provinha de várias
partes da Europa. Uma escavação está prevista para analisar esses restos
mortais de forma a conhecer melhor a população fundadora do país e as primeiras
fases da história dos escravos que por lá passaram.
“Com base nos textos históricos,
sabemos que houve uma sociedade ‘crioula’ que se desenvolveu rapidamente, com
terras herdadas por mestiços que tinham direito a desempenhar cargos oficiais”,
diz Evans, concluindo que os restos mortais agora descobertos constituem “uma
oportunidade de testar esta representação das primeiras gentes de Cabo Verde”.
“Cabo Verde é uma nação jovem a
muitos títulos e precisa de desenterrar a sua história para ter acesso a ela e
continuar a construir a sua identidade nacional”, acrescenta Sørensen.
Faianças e azulejos
As escavações revelaram ainda faianças e azulejos vindos de Portugal, objectos de pedra provenientes da Alemanha, porcelanas chinesas e cerâmicas oriundas de várias partes da África Ocidental.
Foi, aliás, essa a razão, em parte graças a
circunstâncias fortuitas, da entrada na equipa da investigadora Tânia Casimiro,
arqueóloga portuguesa especialista de faiança portuguesa da Faculdade de
Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH-UNL).
“Em 2009, deparei-me com uma
notícia de jornal que mencionava que a Marie Louise e o Chris estavam a fazer
escavações na Cidade Velha”, contou-nos a cientista por email. “No
momento, já me encontrava a meio do meu doutoramento sobre a presença de
faiança portuguesa em Inglaterra e na Irlanda e começava a interessar-me na sua
distribuição atlântica. Entrei em contacto com eles nesse ano e fui
imediatamente colocada na equipa como a especialista da cultura material
portuguesa entre os séculos XV e XX”.
É ela que faz o registo,
identificação e estudo de toda a cerâmica identificada nas escavações. “Tenho
aprendido imenso, não apenas relativamente à faiança e a outra cerâmica
portuguesa”, explica-nos. “Mas sobretudo acerca de como era utilizada nos
contextos coloniais e por diferentes populações, tanto europeias como
africanas. Compreendo como era o quotidiano de sociedades multiculturais”.
Os cientistas não tencionam
ficar-se por aqui. “Esperamos continuar a realizar novas escavações na ilha.
Estabelecemos uma colaboração profissional muito importante com as autoridades
locais e com o Ministério da Cultura de Cabo Verde”, diz-nos Evans.
“Claro que vamos continuar”,
diz-nos Tânia Casimiro. “Ainda este ano eu e mais dois colegas da FCSH-UNL
estivemos durante o mês de Abril na Cidade Velha. Cabo Verde encontra-se
repleto de provas da ocupação portuguesa”, acrescenta.
“Para Cabo Verde e a
Cidade Velha, este foi efectivamente um projecto fundamental, porque atraiu
sobre eles olhares estrangeiros que ali trouxeram novas metodologias e
interesses. E, pessoalmente, foi uma oportunidade para aprender com pessoas
fantásticas, com as quais desenvolvi [pesquisas] muito interessantes a par de
uma sólida amizade”.
Fonte: http://www.publico.pt
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