Não, o Islã não é inerentemente misógino. Eis o porquê – Por Bina Shah
Junaid Jamshed, cantor pop
paquistanês que virou pregador islâmico, viu-se em apuros recentemente por fazer
declarações misóginas na TV.
Tentando provar erroneamente que as mulheres não
têm status independente no islamismo, ele disse: "O nome de Hazrat Maryam
(Maria) é apenas mencionado no Alcorão, e isso por causa de Hazrat Isa (Jesus).
Nenhum outro nome de mulher é citado no livro sagrado. Além disso, Alá não
gosta quando o nome de uma mulher é mencionado no Alcorão".
Um movimento: "Proíbam Junaid
Jamshed" surgiu nas redes sociais horas depois de ser divulgada a
declaração. Paquistanesas revoltadas estão pedindo um boicote aos
empreendimentos comerciais de Jamshed, que incluem um açougue e uma linha de
roupas.
Infelizmente, muita gente no
mundo islâmico ainda pensa como Jamshed, em maior ou menor grau; ortodoxos e
pessoas que interpretam o Alcorão literalmente usam as escrituras e as Hadiths,
ou ditos do profeta, para justificar sua misoginia, interpretando as alegorias
do livro com uma literalidade maliciosa.
Elas distorcem o significado, a
intenção e o contexto das escrituras até que o significado verdadeiro tenha sido
obliterado. Elas não levam em conta o fato de que os versos que dizem respeito
a homens e mulheres tinham o objetivo de introduzir equilíbrio numa sociedade
árabe pagã que não conhecia a ideia de harmonia e cooperação entre homens e
mulheres.
Sociedades muçulmanas há muito
são campos de batalha de um conflito entre o patriarcado clássico e o espírito
revolucionário do Islã em seus primeiros momentos. O ambiente pré-Islã da Meca
do século 7, com seu tribalismo, falta de lei e ordem e guerras frequentes, era
dominado pelos homens.
O advento do Islã desafiou o status quo e
procurou não só introduzir um novo tipo de ordem social como também limitar os
excessos da sociedade da época, que prejudicava mulheres e meninas, a abolição
do costume de enterrar meninas recém-nascidas é um dos melhores exemplos desse
espírito.
No início, o Islã tentava elevar as mulheres e defini-las como
agentes independentes, dotadas de livre arbítrio, responsáveis por seus atos e
imbuídas de certos direitos sobre os homens (assim como os homens são imbuídos
de direitos e privilégios complementares sobre as mulheres).
"No início, o Islã tentava
elevar as mulheres e defini-las como agentes independentes, dotadas de livre
arbítrio, responsáveis por seus atos e imbuídas de certos direitos sobre os
homens."
Embora seja verdade que só Maria
seja citada pelo nome no Alcorão, podemos contar 24 mulheres nas
escrituras, mencionadas de várias formas e com vários propósitos. Segundo
Seyyedeh Sahar Kianfar, que escreve para a Associação Internacional do Sufismo,
18 dessas mulheres aparecem como personagens secundárias.
As cinco principais,
incluindo Maria, mãe de Jesus, Bilquis, a rainha de Sheba, Hannah, mãe de
Maria, Hawa (Eva) e Umm Musa, a mãe de Moisés, "servem como exemplos de
bom caráter, com o qual se pode aprender e no qual pode-se mirar".
Há um capítulo inteiro do Alcorão
intitulado "Maria", que conta a sua história e o nascimento de
Jesus. Outro capítulo, chamado "Mulheres", delineia em detalhes
os direitos e responsabilidades das mulheres e os direitos e responsabilidades
dos homens para com elas. Não parece um livro no qual a aparição de mulheres
seja uma ofensa a Deus.
A análise grosseira de Jamshed
ignora o fato de que o Alcorão nunca teve a intenção de ser um
"livro" cujo objetivo era satisfazer sensibilidades intelectuais.
Muitos detratores do Islã apontam as leis de herança, a poligamia e certos
versos que são interpretados como uma aceitação da violência doméstica, da
escravidão sexual e de outras violações da justiça e dos direitos humanos.
Há
muitas feministas islâmicas, tais como Amina Wadud, Kecia Ali, Riffat Hassan e
Laleh Bakhtiar, que trabalham ativamente para retraduzir e reinterpretar esses
versos do Alcorão.
Elas colocam muitos versos das escrituras, assim como várias
Hadiths, no contexto histórico correto, ignorado pelos juristas clássicos e
tradutores e intérpretes. Os detratores do Islã apontam para um suposto
chauvinismo "inerente", e os misóginos tentam justificar a
perpetuação das tradições patriarcais com citações literais das escrituras.
"O advento do Islã procurou
não só introduzir um novo tipo de ordem social como também limitar os excessos
da sociedade da época, que prejudicava mulheres e meninas."
A misoginia não atrai todos os
homens muçulmanos, mas todos os homens muçulmanos de sociedades tradicionais
foram criados em um contexto cultural de patriarcado, que opera com fortes
princípios de exclusão e de privilégio masculino. Monarquia, colonialismo e
ditaduras violentas, que afetaram a maioria dos países muçulmanos em algum
ponto de suas histórias, enraizaram profundamente esses princípios patriarcais
na psique de homens e mulheres.
Pode-se dizer que os homens internalizaram os
princípios do autoritarismo, amparados pelos sistemas políticos de seus países.
Por sua vez, eles tentam governar as mulheres como seus países foram governados
por autocratas locais e depois colonizados por potências ocidentais. A
misoginia serve para manter o senso de poder pessoal do homem quando seu poder
político lhe foi roubado.
Ultimamente, as mulheres muçulmanas
vêm reivindicando mais direitos, graças a um aumento gradual da educação e da
alfabetização. Elas também respondem a uma demanda crescente por mulheres na
força de trabalho, para fortalecer as economias de seus países.
Desenvolvimento, direitos humanos e movimentos democráticos vindos do Ocidente
às vezes tentam usar os direitos e o status das mulheres como uma régua para
medir quão "oprimida" ou "livre" é uma sociedade.
Sylvia
Poggioli, correspondente-sênior da rádio americana NPR, identificou a
tendência da seguinte maneira: "No debate acalorado sobre o Islã no
Ocidente, as mulheres muçulmanas costumam ser o ponto crítico, seus códigos
para se vestir, seus direitos, seus papeis na sociedade".
Resultado: alguns homens
muçulmanos dão boas-vindas a essa maior estatura das mulheres, enquanto outros
se ressentem e vêem nos "direitos das mulheres" uma influência
estrangeira maliciosa, uma continuação do colonialismo que humilhou e alienou a
geração de seus pais.
A perda do equilíbrio que sempre serviu bem aos homens,
causada tanto pelo Ocidente quanto por mulheres muçulmanas e seus aliados
homens, é responsável por uma espécie de competitividade destrutiva em relação
às mulheres. Os homens que não conseguem lidar com essas mudanças reagem usando
força física e mental para evitar que elas tenham mais autonomia.
"Há muitas feministas
islâmicas que trabalham ativamente para retraduzir e reinterpretar certos
versos do Alcorão sob uma perspectiva feminina."
Nenhuma análise da misoginia nas
sociedades muçulmanas estará completa sem que se entenda o papel da mãe na
família muçulmana. Ela é extremamente poderosa. A maioria dos muçulmanos se
lembra de crescer em uma casa na qual a autoridade maior era a mãe, igualmente
apoiada por figuras femininas fortes: tias, irmãs mais velhas, avós. A
autoridade da mãe sobre a criança é completa (e o Islã garante que o filho
fique sob os cuidados da mãe em caso de divórcio), apesar de isso ir de
encontro ao patriarcado que as crianças observam fora de casa.
Sociedades inteiras no mundo
muçulmano podem de desenvolver e progredir com o avanço das mulheres, e não há
nada nas escrituras que contradiga essa ideia. Mas a misoginia no mundo
islâmico tem de ser enfrentada, para não darmos um passo adiante e logo depois
um passo para trás. Nossas sociedades estão mudando rapidamente, e precisamos
garantir os direitos das mulheres.
Fonte: http://www.brasilpost.com.br
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