Um milhão de muçulmanos franceses orou pelas vítimas do terrorismo – Por Rita Siza
Na Grande Mesquita de Paris,
antes do culto de sexta-feira, muçulmanos passam mensagem de paz e tolerância.
"Não queremos impor a nossa religião. Respeitamos tanto os valores
republicanos quanto os cristãos, os budistas ou os ecologistas".
Clara é uma francesa de grandes
olhos castanhos esverdeados, pele de porcelana e impecáveis credenciais
republicanas: o seu avô, resistente comunista, foi preso pelos nazis e deportado
para um campo de concentração. É também, uma convertida ao islão, uma entre as
muitas mulheres muçulmanas de Paris que, apesar da tristeza imensa que sente,
passa os dias a sorrir. “Sinto que as pessoas quando me vêem não se sentem à
vontade, e por isso sorrio para as tranquilizar, para mostrar que não têm de
ter medo de mim”, explica.
Debaixo de uma chuva copiosa, à
porta da Grande Mesquita de Paris, Clara tem a paciência de explicar uma, duas
e três vezes, em diferentes línguas, por que era tão importante para ela
participar na grande oração de sexta-feira, esta sexta-feira, quando o calendário
marca uma semana passada desde os ataques terroristas em restaurantes, cafés e
no Stade de France, que mataram 130 pessoas.
“Mais do que nunca, os muçulmanos
precisam de projectar uma mensagem positiva. O que eu quero dizer é que estamos
contra estes actos, e queremos garantir à população que somos pela paz e a
tolerância. Não queremos impôr a nossa religião: respeitamos tanto os valores
republicanos como os cristãos, os budistas, os ateus, os ecologistas ou os
defensores dos direitos dos homossexuais”, enumera a jovem.
A Grande Mesquita de Paris tinha
convidado todos os muçulmanos da cidade a reunirem-se ali às duas da tarde, e a
trazer os seus amigos. O dia de portas abertas, com a participação de
dignitários políticos e autoridades religiosas, acabou por ser cancelado, na
véspera, por motivos de segurança. Mas isso não demoveu os crentes.
Camélia, uma marroquina que vive
em Montreuil, nos arredores de Paris, há 11 anos, não pratica o culto na
cidade, só que ouviu a convocatória do reitor da mesquita de Paris e veio de
propósito.
“Quando foi o ataque ao Charlie Hebdo, fiquei deprimida durante
cinco meses. Isolei-me. Acho que foi por isso que decidi vir hoje, para me
sentir acompanhada, para vir prestar a minha homenagem às vítimas daqueles
assassinos num lugar que é muito significativo para mim”, conta ao PÚBLICO. Os
franceses vão à Place de la République, e Camélia vai à Grande Mesquita,
compara.
Mais de um milhão de muçulmanos
franceses eram esperados nas mesquitas e salas de oração de toda a França para
as tradicionais celebrações de sexta-feira, que foram especialmente consagradas
à homenagem às vítimas dos atentados de 13 de Novembro, com a leitura de uma
oração comum: uma iniciativa inédita no país.
No rescaldo dos ataques, o
Conselho Francês do Culto Muçulmano (CFCM) emitiu um comunicado com a sua
rejeição “categórica e sem ambiguidade, de todas as formas de violência ou de
terrorismo, que são a negação dos valores de paz e de fraternidade transmitidos
pelo islão”. Mas os líderes da comunidade muçulmana entenderam que seria
preciso ir mais além das declarações escritas e tomadas de posição oficiais.
“Não podemos nunca
deixar de dizer, uma e outra vez e tantas quantas forem precisas, que o islão
autêntico está a anos-luz da ideologia odiosa destes criminosos terroristas”,
sublinhou.
Para Camélia, a distinção é
evidente. “Não sei se viu os jornais de hoje”, pergunta, referindo-se às capas
que descreviam a alegada kamikazemorta no apartamento de Saint-Denis,
Hasna Aitboulahcen, como uma “pândega”, que gostava de sair à noite e vestir
roupas provocantes, ou ainda os relatos que diziam que, enquanto os seus
comandos disparavam sobre as esplanadas do 10.º e 11.º bairro (arrondissement)
de Paris, o presumível autor dos ataques, Abdelhamid Abaaoud, estava a fumar
droga e beber whisky em Saint-Denis.
“Ora isto não são muçulmanos”, conclui
Camélia, informando: “Um muçulmano não se pode drogar, não pode beber álcool,
não pode dar-se com prostitutas e muito menos pode matar em nome de Alá”.
A prece distribuída pelo CFCM
baseou-se em versos do Corão e do Hâdith, as palavras do profeta Maomé
reproduzidas pelos seus companheiros, para reafirmar a “sacralidade da vida” e
recordar o dever da djihad, ou seja, de seguir num caminho espiritual de
melhoramento pessoal e aproximação a Alá.
A oração também sublinhava que “os
textos das escrituras devem ser apreendidos e explicados por religiosos de
referência, conhecidos e reconhecidos, dotados de ciência e de sabedoria”, têm
sido inúmeros os especialistas no fenómeno da radicalização que têm apontado o
dedo à auto-aprendizagem ou doutrinação pela Internet e redes sociais como o
principal método de recrutamento de terroristas pelo Estado Islâmico (ou Daesh,
o acrónimo árabe que tem uma conotação pejorativa e que foi adoptada pelos
franceses).
Olhando à volta para o
dispositivo de segurança montado em torno do grande templo parisiense, Samuel
lamentava que se confundissem as mesquitas com “escolas militares” e garantia
que “os imãs condenam, a todo o tempo, os actos de violência. Não é só quando
há atentados terroristas”, observa. O que, sim, acontece de cada vez que há um
ataque, refere este homem de 26 anos, que nasceu em Paris e trabalha num
restaurante, é uma “vaga de islamofobia”.
É a “amálgama” de que falam todos os
meios de comunicação franceses, uma palavra que resume a confusão de muçulmanos
com potenciais terroristas, e que transforma muitos homens e mulheres árabes em
alvos de retaliação. “A mim ainda não me aconteceu nada, mas sei de muita gente
no sítio em que vivo que é insultada na rua”, refere.
Aliás,
“exposta em duplo sentido”, elabora: tal como as vítimas dos terroristas,
atingidas quando festejavam com os seus amigos o fim de mais uma semana de
trabalho, Clara costuma encontrar-se com os seus amigos à noite, em convívios
combinados ou espontâneos em restaurantes ou esplanadas. “Como todos os jovens
parisienses que vão ao café, sinto que naquela noite podia ter sido eu”, diz.
Fonte: http://www.publico.pt
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