Umbanda, a religião brasileira que chegou à Alemanha – Por Carla Jiménez
Gabrielle Hilgers fundou o
primeiro terreiro alemão. Há um ano começou a sentir o preconceito que a
prática desperta no Brasil.
O coração segue caminhos
misteriosos e foi por um desses mistérios que a terapeuta alemã Gabriele
Hilgers se casou com o Brasil. O casamento foi selado através da umbanda, a
religião brasileira que ela conheceu há dez anos e se apaixonou de tal forma
que a levou para a sua terra natal.
Gabriele se tornou a primeira mãe no santo
alemã, status das sacerdotisas desta prática religiosa, depois de ser coroada
em 2006 por um pai no santo brasileiro. Dois anos depois inaugurou o
primeiro terreiro de umbanda da Alemanha. A dança alegre, o som dos atabaques e
a linguagem simples para aflorar o amor ao próximo “tem quebrado paradigmas dos
alemães que frequentam esta casa”, comenta mãe Gabrielle.
A religião brasileira, que acaba
de completar 107 anos no último dia 15, nasceu sob influência dos negros
trazidos da África para cá na época da escravidão. Ela trabalha a
espiritualidade sob a inspiração de espíritos antigos e um panteão de orixás,
as divindades cantadas em verso e prosa no Brasil.
De Vinícius de Moraes (era
adepto da religião), a Gilberto Gil, de Chico Buarque a Gal Costa, todos
já renderam homenagem às figuras de Iemanjá, a rainha do mar, Oxum, que mora
nas cachoeiras, ou pai Xangô, que vive na pedreira... Hoje os alemães também
‘batem cabeça’, expressão usada para discriminar a saudação aos guias
espirituais na umbanda, a todo o panteão de divindades desta religião, que
lembra, em alguns aspectos, a mitologia grega.
Dezenas de alemães vestidos de
branco se reúnem semanalmente na Casa de Irradiações Espirituais de São Miguel,
o centro de umbanda de Gabriele, que funciona atualmente em Viehl, mas está de
mudança para Colônia, a quarta maior cidade alemã, onde será reinaugurada em
janeiro.
Pele branquinha, olhos azuis e
cabelos negros, Gabrielle é natural de Dusseldorf. Chegou à umbanda quando
pesquisava novas religiões pelo mundo. Era uma etapa em que se encontrava
inquieta, disposta a aprofundar sua capacidade de cura, que até então estava
restrita aos conhecimentos da psicologia pela física quântica, uma divisão da
física tradicional que enfatiza o poder da energia do pensamento, positivo ou
negativo, sobre as pessoas.
Ironicamente, foi durante uma
imersão de meditações na Índia que ela sentiu o impulso de aprender português e
vir ao Brasil, onde nunca havia pisado antes. “Foi assim. Tive vontade de
aprender a língua portuguesa. Não sei por que tive essa vontade se nunca havia
tido contato com o país”, lembra.
Seguiu a intuição e pediu indicações de
espaços que desenvolvessem a espiritualidade. Chegou a um centro que lhe foi
recomendado, na zona sul de São Paulo. Ao ouvir o som do atabaque que acompanha
os ritos de umbanda, e a atmosfera de dança e de entrega à incorporação, disse
a si mesma:
“Isto é pra mim!”. “Eu dancei o tempo todo, algo que nunca havia
feito antes, e pensava internamente: ‘isto é uma loucura’. E me senti feliz,
como sempre me sinto quando estou com a umbanda.”
Sair do controle para uma
representante da cultura germânica foi, ao mesmo tempo, inesperado e
libertador. “É uma chance para nós, alemães, de viver a nossa verdade pelo
coração, numa religião que não tem dogmas, como é a umbanda”, afirma.
Ao
contrário do catolicismo, por exemplo, onde os referenciais de transcendência
são santos tão bondosos que beiram à perfeição, os filhos da umbanda conhecem a
luz e a sombra dos orixás que regem a sua vida. Na luz, as qualidades afloram.
Na sombra, os defeitos. Oxum, por exemplo, tem infinita amorosidade pelo outro.
Mas é ciumenta, e não gosta de ser contrariada. Ogum é guerreiro, forte
e determinado. Mas também instável e impulsivo e por vezes arrogante.
A simplicidade com que são
apresentados os torna mais próximos das pessoas, que se enxergam nesse espelho
ao ver seu potencial, ao mesmo tempo em que se sentem mais à vontade ao
reconhecer suas falhas quando percalços da vida coloca o equilíbrio em risco.
Um bálsamo para seu seguidores no Brasil e para a rigidez alemã, assegura
Gabriele.
“Os alemães se sentem confortáveis com a umbanda porque podem ter um
contato com Deus sem ter o peso de serem 100% corretos e perfeitos o tempo
todo. Traz leveza para a sua realidade”, afirma. O erro se transforma numa
fonte de aprendizado e não mais de penitência, compara.
A religião brasileira viva a
crença de que os médiuns incorporam espíritos antigos de uma dezena de
entidades, como o preto velho, espíritos de negros idosos, quase sempre
escravos que morreram e guardam sabedoria para lidar com os problemas
terrestres, ou o caboclo (índios guerreiros), e com a inspiração desses
ancestrais se comunicam com as pessoas que procuram o centro de umbanda para
dividir suas preocupações ou tristezas, em busca de uma orientação ou apenas um
ombro amigo.
“Temos recebido gente da Alemanha inteira e também de outros
países vizinhos”, contou Gabriele ao EL PAÍS em sua passagem por São Paulo.
Como no Brasil, as pessoas que buscam um 'atendimento' na umbanda vão atrás da
cura de todo tipo de dor. Mágoa, raiva, ansiedade, depressão, dívidas... aquele
momento confuso em que não se vê nenhuma saída. Quase sempre a porta de entrada
para as religiões. A umbanda, porém, parece mais descomplicada a seus fieis e
elementos muito familiares ao Brasil.
Os médiuns alemães atendem os
seus invocando a energia das entidades conhecidas dos brasileiros, mas também
trabalham com arquétipos da cultura local, como druidas e wikas, da mitologia
celta.
Hoje, centenas de alemães frequentam a Casa de Gabriele, que já
vislumbra a coroação de três novos sacerdotes: duas mães no santo e um pai no
santo, todos nascidos na terra da chanceler Angela Merkel. Quando questionada
se os alemães não deveriam se sentir menos à vontade diante de um credo vindo
de um país tão diferente, Gabriele responde certeira: “Os brasileiros são muito
mais evoluídos espiritualmente que os alemães”, garante.
Mas, nem todos têm essa leitura e algumas provações começaram a aparecer no
caminho desta mãe no santo. Depois de uma acolhida calorosa no início, com
fieis seguidores e um público crescente, há um ano começou a sentir na pele o
preconceito que a religião também desperta no Brasil.
Os vizinhos do endereço
atual onde se encontra o terreiro começaram a reclamar da movimentação no
entorno, do barulho dos tambores, do canto e a estranhar as vestimentas do
grupo.
“Começaram a me chamar de ‘líder de seita’, a reclamar na prefeitura, a
enviar cartas para os jornais locais”, conta. Nada, porém, a faz desanimar da
sua missão. “Me aguardem, não vou desistir jamais”, afirma, que já sonha com
novos espaços dentro em breve.
Fonte: http://brasil.elpais.com
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