A crença na identidade contra a fragilidade do absoluto: a teoria da religião de Žižek - Por Christian Ingo Lenz Dunker
O pensamento de Slavoj Žižek
chegou ao Brasil pelas mãos dos psicanalistas e se disseminou pela via dos
teóricos críticos.
Assim como nos Estados Unidos Žižek está associado ao
cinema, no resto do mundo ele surge como uma espécie de representante maior desta
nova forma de pensar e de fazer política, que são as ocupações, esquerda sem
doutrinação partidária, crítica sem o amargo sabor universitário, psicanálise
sem reverência. Mas talvez a face menos conhecida e quiçá mais explosiva deste
pensador esloveno seja a sua teoria da religião.
Em livros como O amor
impiedoso (Autêntica, 2012), A monstruosidade de Cristo (Relógio
D´Água, 2008) e no recentemente lançado O absoluto frágil: ou, por que
vale a pena lutar pelo legado cristão? (Boitempo, 2015), Žižek marca mais
um ponto neste tema estrutural para a realidade fantasmática brasileira: a
crença.
Muito antes dos ataques ás torres
gêmeas e a emergência da noção política de terrorismo, já havia no autor de A
marionete e o anão: o cristianismo entre perversão e subversão (Relógio
D´Água, 2006) um desconforto com aquilo que se poderia chamar de religiosidade
pós-moderna. O tema parece ter evoluído a partir da percepção de que há
uma espécie de afrouxamento relativo de nossas formas religiosas,
particularmente entre as classes médias esclarecidas do ocidente cristão.
Aqui há dois processos que são
lidos de forma contra intuitiva. O primeiro sugere que o progresso da modernidade
traz um crescente distanciamento de verdades teológicas com o desencantamento
do mundo, a individualização dos costumes e a secularização dos valores. Isso
explica a disseminação destas novas modalidades de espírito do capitalismo: o
capitalismo ecumênico, orientalista, new-age, ecológico, zen-budista, roots ou
gótico-demonológico.
O segundo processo nos faz pensar
que o retorno dos fundamentalismos, o acirramento de ódios étnicos e a
polarização israelo-palestina são exemplos de atraso na marcha do esclarecimento.
Retenções que devem ser resolvidas pela aplicação sumária e bélica de
princípios de democracia liberal e de livre mercado.
Ora, os dois processos devem ser
criticados como sintomas complementares de uma espécie de enfraquecimento ou de
desimplicação generalizada de nossas formas de crença. Da sua combinação
nascerá posteriormente o fundamentalismo islâmico, fenômeno que é a um só tempo
resistência contra a ocupação ocidental e crítica de suas crenças inautênticas.
Contra essa espécie de crença
edulcorada, perfeitamente compatível com os ideais de aumento de produtividade,
apaziguamento da contradição e auto-empreendorismo, ao modo de As Sete
Leis Espirituais do Sucesso ou O Monge Executivo, e contra este Outro
islâmico, africano e bárbaro que seria nossa sombra, Žižek pretende fazer uma
desconstrução interna.
Ou seja, antes de tudo ele quer
desfazer nosso ateísmo preguiçoso que acha fácil acreditar em “nada” e
justamente por isso continuar a fazer o que sempre fez. Ora, este é o núcleo
ideológico da nova crença, que entende que acreditar é uma espécie de fé
íntima, de zona de princípios pessoais, composta por sentimentos intocados de
nossa pureza interior. Não é nada disso. Nossas crenças são fatos interiores,
mas acontecimentos exteriores. Elas são o que nós fazemos, e não o que nós achamos
que fazemos. Nossas crenças ligam, misteriosamente, atos e desejos. Elas não
são explicações retrospectivas que justificam qualquer coisa.
Portanto, não são nossas boas ou
más intenções “por trás” do que efetivamente fazemos, nem a consequência
imediata de nossos atos que fazem nossas crenças, mas a ligação mágica entre as
duas coisas. Esta ligação frágil, contudo, absoluta, é o que nos prende ou
liberta em uma crença. É por isso que o consenso ideológico atual estimula a
inconsequência e a irresponsabilidade diante do que se crê, condena a veemência
com que alguém se agarra a uma ideia e valoriza que as crenças devem ser
relativas, plásticas, adaptáveis aos contextos mutantes.
O que temos aqui é simplesmente
um conceito falso do que vem a ser uma crença. Como dizia Pascal: “ajoelha e
reza… não se preocupe com a crença, ela virá por si mesma”. Por isso, se você
faz a ceia, troca presentes, folga no dia 25 de Dezembro e paga a caixinha de
Natal, não importa muito que você diga que é por causa das crianças, ou porque
é um velho hábito familiar, ou pior, diga que esta é uma festa inventada pelo
comércio capitalista que você participa “mesmo não levando a sério”.
A verdade, ainda que dolorosa, é
simples: você acredita em Papai Noel. Por outro lado, se você acha que a
prática do aborto viola algum tipo sagrado de crença na vida, ou se você
entende que homossexuais são produto de uma espécie de doença espiritual, não
se engane, você é sim uma espécie de fundamentalista de ocasião.
Um exemplo mais atual. Não
importa se você diz que a redução de custos é um princípio moral incontornável,
ou se você pensa que a acumulação de alunos em uma sala de aula corresponde a
uma, sempre desejável, otimização de recursos:se você fecha escolas, você
acredita em prisões.
Por outro lado, se você acredita que o uso de violência
policial contra alunos (depois de recusar-se a negociar sobre o processo de
reorganização das escolas) está inspirado em algum princípio sagrado de ordem e
autoridade, não importa se você é governador cristão ou liberal: no fundo, você
é um fundamentalista.
Contra este regime de crenças
orquestrado pelo cinismo de um lado e pela paixão regressiva pela essência de
certos valores do outro, será preciso, primeiro, desativar a falsa solução
necessária.
Ou seja, o ateísmo fácil e sua atitude complacente, baseada no
ideal de tolerância e paz. Depois disso é preciso mostrar como os crentes não
são tão crentes quanto eles acreditam. Eles estão enganados, sobretudo, sobre
esta partilha imaginária entre “nós” (que acreditamos na mesma coisa) e “eles”
(que acreditam em valores diferentes).
Tomemos, por exemplo, o decálogo
moderno representado pela declaração dos direitos do homem. Ele facilmente se
traduz em termos práticos pelo seguinte: segurança e privacidade
(direito ao adultério e corrupção), busca da felicidade e propriedade (direito
de roubar e explorar os outros), liberdade de imprensa e opinião (direito de
mentir), possuir armas (direito de matar), liberdade de crença (direito de
adorar falsos deuses).
A consequência é que nossa religião do direito é apenas
a negação do decálogo. Ela espelha e cria a condição de que o verdadeiro fiel
só pode se apresentar na condição de vítima. Vê-se assim que o que o crente
dócil, supostamente auto-esclarecido, e o terrorista infame, saído das
profundezas do Outro, têm em comum é a crença na identidade.
Disso decorre a política
multicultural cuja regra é a luta de todos contra todos, tanto do lado do
poder, quanto do lado dos destituídos do poder. Por isso, a verdadeira oposição
não está entre partidários da identidade, fundamentalistas que acreditam
em princípios sólidos e literais contra partidários da diferença, que respeitam
tolerantemente opiniões, diversidades étnicas e de gênero, mas entre estes que
acreditam nas identidades, como fator de valência política, e os que lhes são
produtivamente indiferentes, como uma posição ética.
Esta é a fragilidade
do absoluto. Estamos fartos de discursos que descartam o absoluto
transcendental, para logo em seguida impor leis, regras e mesmo violência como
razão de Estado. Seria melhor admitir que o absoluto está na fugacidade de um
olhar, no heroísmo discreto de um gesto que não procura capitalizar seus
efeitos em termos de ganhos de identidade.
A oposição transformativa não se
dá entre particularistas (defensores de agrupamentos específicos) contra
universalistas (que postulam princípios gerais), mas entre adoradores da
identidade e o universalismo negativo que afirma que a única solução para este
dualismo é a admissão do vazio e da falta como elemento singular que nega a
ambos.
O absoluto frágil é este
universal extraído do particular, esta diferença interna a toda e qualquer
identidade. Tudo se passa como se devêssemos sim radicalizar nossas crenças a
ponto de nos responsabilizarmos mais por elas e para enfim nos separarmos das
falsas crenças das quais nos acreditamos falsamente livres. Aqui a lição de
Lacan é incontornável:
“…chegamos ao fim quando duas
partes da divisão não são mais duas metades, partes de um elemento prévio,
quando não temos mais uma divisão entre alguma coisa e outra (alguma) coisa,
mas sim uma divisão entre alguma coisa e nada.” (Slavoj Žižek, O absoluto frágil. São Paulo, Boitempo: 2015, p. 65.)
Será ainda mais contundente ao
final do livro quando depois de discutir o legado cristão e o judaísmo, depois
de aplicar esta divisão ao islamismo (no “Prefácio à segunda edição”) e depois
de mostrar que o absoluto frágil é um acontecimento contingente, uma espécie de
“sorriso caloroso e afetuoso de uma pessoa que, em condições normais pareceria
feia e rude” (O absoluto frágil, p.126) nos é apresentada a ideia de
que a estrutura de nossa crença ocidental judaico-cristã pode ser pensada como
Lacan pensou nosso processo de sexuação.
O absoluto frágil é
certamente um livro curioso. Em certo sentido profético e antecipatório em
relação ao colapso de nossas oposições clássicas em termos de crenças, cujo
desmoronamento é contemporâneo do desmoronamento das torres gêmeas, que com
elas levaram o relativismo benévolo de um Derrida à americana.
Por outro lado, é um livro
anacrônico porque se dedica mais à nossa crença banal neurótico-cêntrica e
normalopática do que ao problema do terror e do fundamentalismo.
Contudo, o que o torna este um
livro contemporâneo é sua profunda atualidade para ler a situação brasileira.
Com ele, podemos entender como os melhores esforços para modernizar o país
acabaram se tocando, quase que em pé de igualdade, com as crenças mais
retrógradas em termos do neofundamentalismo á brasileira.
A cultura das vítimas, a caça à
corrupção, a chantagem como instrumento do cinismo, a crença interpassiva… tudo
isso se poderá ver e ler a céu aberto na pantomima e no faroeste caboclo que se
forma em nosso país.
Fonte: http://blogdaboitempo.com.br
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