A trajetória do pensamento católico no Brasil – Por José Tadeu Arantes
Apesar de persistente declínio
numérico, ao longo das últimas décadas, o catolicismo ainda é a religião majoritária
no Brasil.
Segundo dados do Censo de 2010, o último realizado, havia, na
população da época, 64,6% de católicos apostólicos romanos; 22,2% de
evangélicos (não pentecostais ou pentecostais); 2% de espíritas; 0,7% de
testemunhas de Jeová; e 0,3% de umbandistas e candomblecistas, para mencionar
apenas os cinco segmentos religiosos com maior expressão quantitativa. No mesmo
levantamento, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), 8% dos entrevistados declararam-se "sem religião”.
Um projeto temático, com a
participação de vários pesquisadores, investiga a trajetória do catolicismo no
Brasil desde meados do século XIX e sua influência em vários campos da vida
nacional.
Trata-se do estudo: "Congregações católicas, educação e Estado
nacional no Brasil”, coordenado por Agueda Bernardete Bittencourt, professora
da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp – São
Paulo), com o apoio da FAPESP.
Um dado interessante destacado
pelo estudo é que, embora a colonização europeia do território brasileiro tenha
se dado sob a égide do catolicismo, a presença quantitativa de religiosos
católicos era muito pequena no país até a última década do século XIX.
"Em
1880, havia, no Brasil, apenas sete ordens religiosas masculinas e 11
femininas, e todo o clero católico era composto por menos de 3 mil pessoas. A
entrada maciça de religiosos católicos provenientes da Europa ocorreu a partir
de 1890, com picos importantes nas décadas de 1920, 1950 e 1960”, afirma Agueda
à Agência FAPESP.
Os religiosos, homens e mulheres,
vieram em congregações, algumas delas previamente estabelecidas no país; a
maioria instalando-se com sua chegada. Um dos motivos de sua vinda foi a expulsão
dessas congregações dos países europeus, devido ao processo de laicização dos
Estados nacionais.
Outro motivo foi a demanda da elite brasileira e da elite
eclesiástica por pessoal qualificado, para estabelecer, aqui, colégios e
asilos, oferecer atendimento à saúde, e mesmo atuar em outras áreas
especializadas, como a imprensa.
"Essa entrada maciça de
religiosos foi também um projeto da Igreja Católica, que tinha interesse em
catolicizar as repúblicas da América Latina, não apenas o Brasil, mas, igualmente,
a Argentina, o Chile, a Colômbia, o México, o Peru, o Uruguai, a Venezuela etc.
Pois, durante o século XIX, por decorrência da Revolução Francesa e do ideário
liberal ou positivista, houve forte restrição à atuação católica no continente.
Conventos foram fechados em países como a Argentina e o Peru. E chegaram a
ocorrer perseguições aos religiosos na Colômbia, no México e na Venezuela”,
informa a pesquisadora.
De qualquer modo, o Brasil foi o
país que mais recebeu religiosos, pela vastidão do território e porque não
tinha uma infraestrutura escolar e de saúde que cobrisse tal espaço. Assim, ao
longo de quase um século, foram registrados os seguintes números para a entrada
de novas congregações: 13 (1890), 20 (1900), 23 (1910), 41 (1920), 29 (1930),
26 (1940), 51 (1950), 41 (1960), em um universo de 260 congregações mapeadas
pela pesquisa até o momento.
"Os religiosos que vieram
até a primeira metade do século XX estavam, em sua maioria, comprometidos com o
projeto de centralização da Igreja, nos moldes propostos pelo Concílio Vaticano
I, realizado na segunda metade do século XIX. Com base no dogma da
infalibilidade papal, promulgado em 1870 pelo Papa Pio IX no decorrer desse
concílio, a Igreja se arvorou o direito de ‘dizer a verdade’ a partir de Roma”,
afirma Agueda.
Religião do Estado
Tal centralização ou romanização
teve importante repercussão na Igreja instalada no Brasil. Esta, durante boa
parte do século XIX, fora bastante contida pela ação do imperador Pedro II.
Influenciado pelo liberalismo e pelo positivismo, e aberto a ideias novas, como
a Teoria da Evolução de Darwin, Pedro II manteve o catolicismo como religião do
Estado, mas procurou restringir a influência da Igreja, proibindo a abertura de
seminários, controlando a seleção dos bispos e coibindo a entrada de novos
quadros estrangeiros.
Como depositária da religião
oficial, a Igreja Católica estava submetida ao Estado. Por isso, quando os
bispos de Olinda [Estado de Pernambuco] e Belém [Pará], influenciados pela
ênfase antiliberal do Concílio Vaticano I, desafiaram abertamente o direito civil,
ordenando a expulsão dos maçons das irmandades católicas leigas, o caso foi
levado ao Superior Tribunal de Justiça, que condenou, em 1874, os dois
religiosos a quatro anos de prisão, com trabalhos forçados.
O imperador comutou
a pena para prisão simples, mas só anistiou os bispos depois que o Vaticano
anulou as interdições aos maçons. Tal caso ficou conhecido, na historiografia
brasileira, como a "Questão Religiosa”. Não por acaso, a entrada das
congregações católicas no Brasil só adquiriu importância numérica a partir da
década de 1890, após a proclamação da República.
"Fragilizada na Europa, e
buscando legitimar uma política centralizada em Roma, a Igreja elegera a
América Latina, colonizada por dois países católicos, Espanha e Portugal, como
um espaço de forte investimento. Já em 1858 fora fundado o Colégio Pio
Latino-Americano de Roma, criado para formar quadros para os países de língua
latina alinhados com os cânones romanos. No entanto, o ponto alto da investida
constitui-se na convocação de todos os arcebispos e bispos do continente pelo
Papa Leão XIII para o Concílio Plenário da América Latina, celebrado na sede do
papado, no apagar das luzes do século XIX. Desse conclave, que reuniu 53
prelados, dos quais 11 brasileiros, emanaram as diretrizes para a ação da
Igreja no século seguinte”, escreve a pesquisadora.
Romanização e conservadorismo
A entrada das congregações
católicas trouxe ao Brasil religiosos qualificados, provenientes,
principalmente, da França e da Itália, que passaram a atuar em escolas,
hospitais e na imprensa.
Na primeira etapa, que se estendeu da década de 1890
até a década de 1950, a Igreja, comprometida com o processo de romanização e o
ideário conservador, empregou esses novos recursos humanos principalmente em
sua própria estruturação. Assim, o número de dioceses, inferior a duas dezenas,
por ocasião da Proclamação da República, cresceu até chegar às 272 dioceses
atuais.
"A preocupação de não mais
se limitar a combater escritores laicos, ateus ou agnósticos, e sim produzir
uma imprensa própria, constituída por livros, revistas e jornais, com a mesma
qualidade intelectual e gráfica dos produzidos pelas empresas laicas, levou a
Igreja a incentivar a manifestação de escritores católicos. E este movimento,
no Brasil, foi capitaneado pelo grupo do Rio de Janeiro, que fundou, em 1921, a
revista "A Ordem”, e, no ano seguinte, o Centro Dom Vital. Depois da morte
acidental de Jackson de Figueiredo (1891 – 1928), criador dos dois projetos, o
mais importante protagonismo intelectual desse grupo foi exercido por Alceu
Amoroso Lima”, relata Agueda.
A trajetória pessoal de Alceu
Amoroso Lima (1893–1983) é exemplar da trajetória coletiva do catolicismo
brasileiro, no século XX. Por isso, convém descrevê-la com maior detalhe. Filho
de industrial e neto de aristocrata, formou-se em Direito, no Rio de Janeiro, e
deu continuidade aos estudos na França, onde frequentou o curso ministrado pelo
filósofo Henri Bergson (1859–1941), na Sorbonne.
De volta ao Brasil, trabalhou
como advogado, antes de assumir a direção jurídica de uma fábrica da família.
Ao iniciar sua atuação na imprensa, como crítico literário, em 1919, adotou o
pseudônimo de Tristão de Athayde, para não confundir a atividade jornalística
com a atividade empresarial.
Liberal em política e agnóstico
em Filosofia, Alceu converteu-se ao catolicismo, em 1928, depois de uma intensa
troca de ideias com Jackson de Figueiredo. Sua conversão teve grande
repercussão, tanto na esfera familiar quanto na esfera pública.
No âmbito familiar,
a principal consequência viria a ser, duas décadas mais tarde, o ingresso de
sua filha Lia no monastério e na clausura. Nascida em 1929, em Petrópolis, no
Rio de Janeiro, Lia, com o nome religioso de madre Maria Teresa, tornou-se, aos
22 anos, monja enclausurada, no mosteiro beneditino de Santa Maria, em São
Paulo. No âmbito público, a intensa produção literária, jornalística e
epistolar de Lima constituiu-se no principal baluarte do pensamento católico no
país.
No decurso de uma vida longa, ele
redigiu quase uma centena de livros, um número incontável de artigos,
publicados em periódicos, como O Jornal, Diário de Notícias, Tribuna da
Imprensa, Jornal do Brasil e Folha de S. Paulo, e manteve correspondência com
alguns dos mais importantes intelectuais brasileiros. Para a filha
enclausurada, escreveu quase diariamente, durante 30 anos, mantendo-a informada
do que se passava no país.
"Até o fim dos anos 1940,
Alceu caracterizou-se por posições bastante conservadoras e chegou a simpatizar
com a Ação Integralista Brasileira, embora não tenha participado dessa
organização, de inspiração fascista. Nesse período, engajou-se em causas como a
indissolubilidade do casamento, a pluralidade sindical e o ensino religioso nas
escolas públicas. Ao modelo de educação laica, pública e obrigatória, defendido
por Anísio Teixeira, contrapôs a proposição de uma educação livre, de escolha
da família. E, em oposição à Universidade do Distrito Federal (UDF), criada por
Anísio Teixeira, empenhou-se na fundação da Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro (PUC-RJ), a primeira das PUCs, cujo modelo inspiraria as demais,
inclusive, a de São Paulo”, conta a pesquisadora.
O grupo do Rio de Janeiro era
liderado pelo cardeal Sebastião Leme (1882–1942) e, além de Lima, reunia vários
intelectuais influentes, como o padre Leonel Franca, o escritor Gustavo Corção,
o jurista Sobral Pinto, entre outros. E incorporou, mais tarde, o então padre e
futuro cardeal Hélder Câmara (1909–1999).
Catolicismo progressista
Uma forte inflexão, da direita
para o centro e do centro para a esquerda, operou-se no meio intelectual
católico brasileiro a partir da Segunda Guerra Mundial.
"Durante a guerra
e especialmente no pós-guerra, ocorreu na Europa uma transformação profunda no
pensamento e na prática dos religiosos. Foi um direcionamento para o trabalho
no mundo, em prol da superação das desigualdades e da promoção da justiça
social. Como reflexo disso, Alceu Amoroso Lima viveu uma espécie de segunda
conversão, durante os anos 1950, mudando de campo. De simpatizante do
integralismo, tornou-se interlocutor do chamado catolicismo progressista. Foi
um dos protagonistas do processo de renovação, promovido pelo Concílio Vaticano
II (1961 – 1965). E, após o golpe de Estado que depôs o presidente João Goulart,
em 1964, colocou-se, abertamente, no campo da oposição à ditadura
civil-militar”, informa Agueda.
Ainda nos anos 1950, outra forte
influência na renovação do catolicismo no país foi a do padre francês
Louis-Joseph Lebret (1897–1966), criador do movimento: "Economia e
Humanismo”, como uma espécie de terceira via diante da dicotomia
"Capitalismo versus Socialismo”.
Lebret, que viria a ter, mais tarde,
atuação decisiva no Concílio Vaticano II, participando da redação da
constituição: Gaudium et Spes ("Alegria e Esperança”) e da encíclica
Populorum Progressio ("Do Progresso dos Povos”), proclamadas pelo papa
Paulo VI (1897 –1978), visitou, várias vezes, o Brasil, orientou pesquisas
sobre as condições de vida nos bairros pobres de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo
Horizonte [Minas Gerais] e Recife [Pernambuco] e formou jovens ativistas, como
Plínio de Arruda Sampaio, Francisco Whitaker e outros, que compuseram uma
espécie de ala esquerda do Partido Democrata Cristão.
"As atuações de Alceu e de
Lebret visavam, cada qual a seu modo, à formação de uma elite intelectual
progressista. A de Alceu priorizava o debate no campo literário e jornalístico.
A de Lebret uma capacitação técnica, capaz de formar quadros altamente
qualificados para assessorarem os governos. Um ponto central enfatizado pelos
dois protagonistas e seus seguidores foi o da produção bibliográfica. Isto
levou à criação da Editora Agir, no Rio de Janeiro, e da Editora Duas Cidades,
em São Paulo. Pensadores fundamentais na renovação do catolicismo, como Emmanuel
Mounier, Jacques Maritain e Teilhard de Chardin, foram lidos e discutidos no
período”, lembra a pesquisadora.
Segundo ela, houve ainda um
terceiro influxo, este dialogando diretamente com os segmentos populares. Foi o
dos "padres operários”, que surgiram, na Europa dos anos 1940, e chegaram
ao Brasil nos anos 1950, principalmente por meio da ordem dominicana.
Mas não
se deve pensar que essa inflexão obteve unanimidade no corpo da Igreja Católica
e em sua área de influência. Ao contrário, estas experimentaram uma forte
polarização entre direita e esquerda, nas décadas de 1940, 1950 e 1960.
"Após a primeira visita do padre Lebret ao Brasil, em 1947, ele ficou
cinco anos sem poder voltar, devido a gestões, junto ao Vaticano, dos
arcebispos conservadores do Rio de Janeiro e de São Paulo, Dom Jaime de Barros
Câmara e Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Motta, respectivamente. E Gustavo
Corção, que fora introduzido no catolicismo por Alceu Amoroso Lima, tornou-se,
depois, seu maior opositor, como um dos principais ideólogos do conservadorismo
católico”, sublinha Agueda.
"A transição que se operou
desde o final do século XIX até o Concílio Vaticano II foi a formulação de um
humanismo cristão, que trouxe a profissionalização e também a politização dos
quadros da Igreja, possibilitando uma produção e apropriação do conhecimento
científico. Principalmente, os jesuítas e os dominicanos, mas não apenas eles,
protagonizaram esse movimento. A opção pelo trabalho social levou esses
religiosos a procurarem entender as condições de geração da miséria na
sociedade contemporânea. E isto os aproximou dos pensamentos marxista e
anarquista. Tal análise foi demandada pelos próprios trabalhos de base, em
movimentos como o dos padres operários, de formação de comunidades de base, de
educação popular, de atuação no meio rural etc. E tudo isso acabaria levando,
depois, à formulação da Teologia da Libertação”, conclui a pesquisadora.
Fonte: http://site.adital.com.br
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