Europa: os nus e os mortos – Por José Jorge Letria
Será que, deste modo, o Ocidente
está a evidenciar sinais de fraqueza que só fragilizarão a sua desejável
capacidade negocial?
As capitais europeias que se
vestiram de gala para receber Hassan Rouhani, o Presidente do Irão, e o seu
séquito decidiram ocultar a nudez de obras referenciais e indiscutíveis do seu
património cultural secular para evitar sobressaltos religiosos e metafísicos
nos visitantes. O pudor táctico sobrepôs-se à nudez e a ocultação do génio
evitou acentuar a diferença existente entre políticas e políticos, entre
Estados, civilizações e culturas.
Miguel Ângelo, que não teve um
feitio fácil, sentiu o peso desta nova Inquisição, como se ouvisse alguém
segredar-lhe ao ouvido: “Se não cobrimos prudentemente o que deve ser coberto,
lá irão menos aviões para Teerão e a liquidez dos nossos cofres será
forçosamente afectada”.
Na realidade, a arte esteve sempre na vizinhança dos
beligerantes e muitas vezes serviu para apaziguar conflitos de proporções
inquietantes. Mas, uma pergunta prevalece quando se lida com este tipo de
opções. Será que, deste modo, o Ocidente está a evidenciar sinais de fraqueza
que só fragilizarão a sua desejável capacidade negocial?
Poucas semanas antes desta visita
do Presidente do Irão, o Ocidente assistiu à destruição de partes
significativas da cidade de Palmira, símbolo da capacidade que os povos
tiveram, há dois mil anos, de se juntarem pela via do comércio e do gosto e de
abrirem novos caminhos.
Palmira foi uma cidade singular e ainda hoje o muito
que resta da sua pujante arquitectura é revelador da natureza dos homens e das
mulheres que ali viveram e conviveram com a diferença e com o mundo.
É certo
que eram outros tempos e e os outros os modos. Mas não é menos certo que esses
seres humanos eram, em quase tudo, semelhantes a nós, também no gosto e na
forma de lidar com o complexo e sempre desafiante binómio guerra-paz.
O radicalismo islâmico que
converte a religião em ideologia totalitária e que, em nome dela, destrói e
apaga do mapa os vestígios de civilizações onde não imperava o seu complexo e
intolerante sistema de valores também aproveita para fazer bom negócio com
aquilo que ameaça destruir, pois sabe, como sempre soube, que há
coleccionadores e traficantes que lidam bem, sem ponta de escrúpulo, com a
vizinhança do sangue.
Assim, temos de um lado um Islão
que não suporta a nudez masculina e feminina, que não dialoga com mulheres,
sobretudo se não estiverem convenientemente cobertas, e de outro um Ocidente
que, com uma nervosa agilidade, esconde tudo aquilo que lhe possa afectar o
negócio.
A “real politik” tem regras e tempos certos e não está aberta a
debates académicos sobre assuntos que, à partida, já estão resolvidos, muito
antes da aterragem dos aviões dos visitantes. Se a nudez pode estragar o
negócio, então que agilmente se oculte a nudez e se peça desculpa aos
interessados pelo facto comprometedor de ela ter chegado sequer a existir.
E ainda bem que esta política da
ocultação do que é embaraçoso não se amplia. Se tal acontecesse, seria urgente
apagar do mapa as fronteiras onde não resolve a situação dos
refugiados-migrantes e também as capitais onde se decide expulsar os que chegam
de longe em busca de pão e tecto e onde se decide cortar apoio humanitário e
confiscar bens materiais.
Recuando um pouco no tempo, talvez fosse até
conveniente eliminar fisicamente o que resta dos campos de concentração nazis,
de Auschwitz a Bergen-Belsen, onde morreu Anne Frank, pois nunca se sabe, com
a radicalização à direita de países como a Hungria ou a Polónia, se estes
“equipamentos” não poderão voltar a ter um trágico uso.
Aqui, ficamos divididos
entre os nus e os mortos, como no título do célebre romance de estreia do
norte-americano Norman Mailer, com a memória trágica da guerra bem presente. Nesta Europa, de um lado estão os
nus e do outro jazem os mortos, adultos, crianças e velhos que o Mediterrâneo
não sabe nem quer poupar entre a Turquia e a Grécia.
Poderia até Bruxelas criar, como
imperativo categórico, uma comissão para avaliar as políticas de ocultação e
para determinar os níveis de risco das várias formas de nudez. Talvez os
próprios iranianos, com mais ou menos aviões vindos de França, não conseguissem
ocultar a surpresa e sobressalto com as conclusões.
O problema é o que o génio
dos criadores construiu e materializou e, por outro lado, a pequenez política
dos negociadores de hoje, sem perspectiva de futuro e atormentados com o peso
moral e civilizacional do passado.
Escritor, jornalista e presidente
da Sociedade Portuguesa de Autores
Fonte: https://www.publico.pt
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