Obviedade recodificada – Por Marcelo Campos




O artista Hélio Oiticica declarara um interesse profundo em trabalhar com as imagens óbvias que desenharam a nossa brasilidade. Com isso, o Tropicalismo abriu espaço para refletirmos sobre o kitsch das decorações e gostos populares, o exótico de nossos símbolos nacionalistas: ``banana is my business``. Lá, nos anos 1960, a arte brasileira vislumbrava um possível caminho de aceitação e, ao mesmo tempo, crítica às imagens que construíram nossa brasilidade. Na mesma época, com o surgimento do chamado pós-modernismo, a originalidade das imagens e a ideia de invenção do novo deixaram de ser objetivos dogmáticos. Artistas lançavam mão das apropriações tanto de materiais e objetos quanto de imagens pré-existentes. Atitudes que tiveram ascendência nas colagens cubistas e nas apropriações de Marcel Duchamp no início do século XX. Abria-se uma tarefa para as artes: trabalhar com a recodificação da realidade, investir nas imagens óbvias que nos acompanham nos cartazes das ruas, nas embalagens dos supermercados. A seca, para o Brasil, é uma destas imagens óbvias ``da realidade`` que atravessa a arte, desde que a empreitada modernista os romances regionalistas dos anos 1930 resolveram mostrar, parafraseando Flora Süssekind, que o Brasil na era longe daqui. Conceitualmente, este interesse começa nas literaturas de viagem do século XIX. Vejam que a seca, então, faz parte de um Brasil anedótico, contado e recontado por cronistas, viajantes brasileiros e estrangeiros. Portanto, o tema ``seca`` ativa uma espécie de narrativa on the road, como se fizesse parte de um diário de anotações escrito por sujeitos interessados em contar o que é o Brasil.

Os naturalistas, ao descreverem as paisagens, a geomorfologia, já atentavam para aridez de parte do sertão brasileiro. E reparem que ``sertão`` só depois passou a denominar o que hoje conhecemos como região de paisagem árida. E até hoje não é um termo reconhecido pelo IBGE. Sertão continua sendo uma palavra livremente atribuída a diversas paisagens brasileiras. A palavra ``sertão`` está presente desde a carta de Pero Vaz de Caminha, designando um lugar mais longe, mais para dentro da costa. Nas artes, a seca é combatida e, ao mesmo tempo, seduz artistas, fotógrafos, cineastas. O critico de arte Hal Foster afirma que muitas vezes precisamos usar as imagens óbvias para criticar usos e abusos sobre temas clássicos da arte. As imagens da terra rachada, do homem fugindo do sertão, da subnutrição das crianças têm seus defensores nas artes, como Portinari e Sebastião Salgado. A arte contemporânea, interessada na já citada apropriação do objeto, buscou uma renovação de tais imagens e conceitos. Aqui, podemos inscrever o cinema de Karim Aïnouz e Marcelo Gomes, autores respectivamente de O Céu de Suely e Cinema, aspirinas e urubus.

O sertão destes autores contemporâneos é marcado pela aridez que vai além da paisagem e impregna os sujeitos, os laços de amizade entre um alemão que foge da Primeira Guerra, nos anos 1940 e encontra um matuto à procura de emprego e melhoria de vida, fugindo da aridez do sertão paraibano. Como esperança para as dores, uma pílula, a aspirina. A aridez de Suely aparece na busca pela estrada como vir-a-ser, num sertão repleto de moto táxi, substituindo os antigos burricos e jegues. Suely quer a promessa de felicidade, negociando uma noite de sexo, rifando o corpo, patrimônio católico, lugar de pecado, para fugir do inferno sertanejo. Aqui, já percebemos que a narrativa sofrida dá lugar a metáforas para além da paisagem árida, dos pés rachados. O êxodo, agora, está dentro da alma dos personagens.

Na fotografia, o coletivo Paisagem Submersa - formado pelos fotógrafos João Castilho, Pedro David e Pedro Motta - busca os últimos instantes, as últimas paisagens de sete municípios do Vale do Jequitinhonha, norte de Minas Gerais. Ali, o sertão ``virou mar``, inundado para a construção de uma usina hidrelétrica. Nas imagens, a atmosfera mística e metafísica é reelaborada. Como na narrativa tradicional, estão presentes os animais, a terra, a religiosidade. Mas, o desmanche do lugar mostra sujeitos destruindo seus próprios patrimônios e deixando outros. Os moradores desmancham as casas, aproveitam vigas de madeira, e carregam consigo cobertores, rádios de pilha, fotografias. A transposição do São Francisco, no nordeste do Brasil, também promoverá uma inundação parecida, submergindo cidades históricas como Piranhas, no interior de Alagoas. No projeto Sertão Contemporâneo, realizei uma curadoria em busca de uma renovação do que poderia representar o sertão como assunto para as artes. Percebi que a narrativa tradicional pode ser reconfigurada com outras linguagens da arte e outros conceitos. Assim, o sertão aparece em seis diários dos artistas Brígida Baltar, Delson Uchôa, Efrain Almeida, José Rufino, Luiz Zerbini e Rosangela Rennó. Para o projeto, escolhi, propositalmente, artistas que lidassem com linguagem distintas: fotografias, vídeos, desenhos, esculturas, pinturas, instalações. Cada um, acompanhado ou não por mim, percorreu um sertão realmente ou na imaginação.

As poéticas lidam com a religiosidade, a seca, os bordados de Lampião, o verde repentino das chuvas, os redemoinhos de Guimarães Rosa. Nos conceitos, ativamos novidades como o sertão com chuvas recorrentes no Juazeiro de Brígida, o homoerotismo em Efrain e Delson, a miragem de um sertão imaginado no projeto de Zerbini, a sedução e a revolta pela narrativa clássica das secas, no projeto de Rufino, as imagens instantâneas, de fotógrafos contemporâneos que conseguiram capturar o ``Dito-Cujo`` nos redemoinhos de Rennó. Com este projeto, pude perceber que o Brasil ainda interessa ao Brasil, mesmo que o olhar seja sempre estrangeiro. A seca é uma aridez real que até hoje irriga a imaginação do artista, como uma fábula clássica que jamais lemos, mas que de tão comentada torna-se nosso mito de origem.

MARCELO CAMPOS é crítico de arte e curador e professor adjunto do Departamento de Teoria e História da Arte do Instituto de Artes da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).


Fonte: http://www.noolhar.com/opovo

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