Um homem de Deus – Por Dom Orani João Tempesta
Voltou para a casa do Pai o homem
que lutou para conseguir construir um mundo mais justo e humano e que amou a
Igreja até o fim de seus dias, dom Eugenio de Araujo cardeal Sales.
Como bem
indica a etimologia grega: Eugenios, “bem nascido, nobre”. Sim, em toda a sua
vida foi nobre entre os pequenos; sempre tratou a todos com leveza espiritual.
Sua nobreza e pobreza estavam contidas em sua leveza espiritual.
Nasceu na
Fazenda Catuana (Acari, RN), em 8 de novembro de 1920. Era bisneto de Cândida
Mercês da Conceição, uma das fundadoras do Apostolado da Oração na cidade de
Acari. Esse contato com a natureza o iluminou em seus trabalhos sociais iniciais,
como a criação de sindicatos rurais, a fundação do movimento de educação de
base e a alfabetização pelo rádio, início das Comunidades Eclesiais de Base,
início da Campanha da Fraternidade.
Realizou seus primeiros estudos
em Natal, Rio Grande do Norte, inicialmente em uma escola particular, depois no
Colégio Marista e, finalmente, ingressou, em 1936, no Seminário Menor de Natal.
Realizou seus estudos de filosofia e teologia no Seminário da Prainha, em
Fortaleza, Ceará, no período de 1937 a 1943. Essa experiência o marcou
profundamente. Quando se tratou de acolher seminaristas de outras dioceses no
Rio de Janeiro, ele o fez com muita alegria, visto a sua experiência em sua
formação. A abertura para o outro, não vendo no outro nenhum forasteiro, mas membro
do povo de Deus, irmão nosso, faz muita diferença em nossa missão de Igreja e
em nossa caminhada pastoral.
Dom Eugenio foi ordenado
sacerdorte pela imposição das mãos de dom Marcolino Esmeraldo de Sousa Dantas,
bispo de Natal, no dia 21 de novembro de 1943, na mesma igreja onde recebera o
batismo, na paróquia Nossa Senhora da Guia, em Acari. Foi ordenado bispo no dia
15 de agosto de 1954, para a arquidiocese de Natal. E no dia 29 de outubro de
1968 se deu sua nomeação como arcebispo de Salvador e primaz do Brasil, pelo
papa Paulo VI. Seus trabalhos pastorais e sociais no Nordeste foram inúmeros. O
filho do Rio Grande do Norte, primaz do Brasil, cardeal da Santa Igreja, depois
se tornou o arcebispo da ex-capital da República do Brasil.
No consistório do dia 28 de abril
de 1969, presidido pelo papa Paulo VI, dom Eugenio de Araujo Sales foi criado
cardeal da Santa Igreja Romana, do título de São Gregório VII, do qual tomou
posse solenemente no dia 30 de abril do mesmo ano. Era, até sua morte, o
cardeal mais antigo do Colégio Cardinalício.
Trazia como lema de ordenação:
“Impendam et superimpendar”, alusão à frase de São Paulo (2Cor 12, 15):
“Ego autem libentissime impendam et superimpendar ipse pro animabus vestris”,
ou “De mui boa vontade darei o que é meu, e me darei a mim mesmo pelas vossas
almas”.
No dia 13 de março de 1971, o
papa Paulo VI o transferiu da Sé Primacial e o nomeou arcebispo do Rio de
Janeiro, função exercida até 25 de julho de 2001, pois aos 75 anos já tinha
pedido a renúncia, conforme o grau de idade, em conformidade com as normas do
Direito Canônico, mas permaneceu até aos 80 anos no cargo de arcebispo, até que
o seu pedido foi aceito pelo papa João Paulo II, depois de mais de 30 anos que
marcaram profundamente a Igreja de São Sebastião do Rio de Janeiro.
Muitos se lembram de quando fora
arcebispo de Salvador, Bahia, e, unido a uma equipe, deu início às CEBs
(Comunidades Eclesiais de Base), bem como deu continuidade à Campanha da
Fraternidade (a CF foi criada por ele em Natal, RN).
O que não dizer então
sobre o Diaconato Permanente: dom Eugenio foi um dos primeiros bispos do Brasil
a implantar este ministério. Ordenou mais de 200 sacerdotes e foi o sagrante
principal de mais de 20 bispos. Ao mesmo tempo que dedicava sua vida à
arquidiocese, ainda acumulava o acompanhamento em onze congregações na Santa
Sé, entre Conselhos e Comissões. Um grande representante brasileiro junto ao
governo central da Igreja.
Foi um grande defensor da
doutrina católica e demonstrou que, seguindo a verdadeira doutrina, poderia ser
muito bem um grande evangelizador, missionário, catequista e também um grande
combatente pelo social e pela dignidade humana. Este seu trabalho não foi
reconhecido na época devido à tendência que havia na comunicação; foi
redescoberto mais tarde através de tantos testemunhos que pouco a pouco foram
aparecendo.
Chegou a ser chamado de “bispo vermelho” por ter ajudado a criar
sindicatos rurais no Rio Grande do Norte e também quando, durante o
totalitarismo militar, entre 1976 a 1982, ele mesmo escondeu, guardou e cuidou
de 4 mil homens, naquele período da revolução, na maioria argentinos.
Ele mesmo
assumiu discretamente a causa daqueles refugiados políticos latino-americanos.
Articulou uma ação com a Cáritas e o Alto Comissariado das Nações Unidas para
os Refugiados e, de início, abrigou-os no Palácio São Joaquim (Palácio
Episcopal), porém, mais tarde, usou de apartamentos para esconder todas aquelas
pessoas. Para a maioria conseguiu asilo político em países europeus.
Enquanto
lutava pelo asilo político, era ele quem corria atrás da sustentação e
manutenção de todos. Para conseguir o asilo político, enfrentou muitas
dificuldades e embates com as autoridades da época, nem sempre visíveis ou
noticiados pela comunicação. Mas sua autoridade dobrava a encruzilhada da
história naquele momento. Sua leveza fazia com que portas se abrissem, mesmo
que as dobradiças se mostrassem “enferrujadas”. O marechal Castello Branco
chegou a defini-lo como o bispo mais perigoso do Brasil.
Ele não temia os poderes da
época, a ponto de um dia telefonar para o general Silvio Frota e lhe dizer:
“Frota, se você receber comunicação de que comunistas estão abrigados no
Palácio São Joaquim, de que eu estou protegendo comunistas, saiba que é
verdade, eu sou o responsável. Ponto final, ponto final”. Sem contar quanta
repercussão houve e perseguição sofreu quando se negou a celebrar uma missa
pelo aniversário do AI-5.
Muito se destacou na vida
pastoral da Igreja Católica, incluindo a criação de centros de atendimento a
portadores do HIV. Teve forte empenho na formação de líderes que atuaram na
Pastoral Carcerária, na Pastoral das Favelas, na Pastoral do Menor.
Dom Eugenio marcou a história da
Igreja no Brasil com seus gestos e ações, mas principalmente com sua exposição
sempre corajosa, catequética e profética escrevendo para muitos jornais de
grande circulação. Com sua inteligência sabia criar e formar consciências.
Teve sempre boa e profissional
aproximação com os meios de comunicação social, apresentando suas reflexões
tanto nas TVs como nas rádios de inspiração católica. Um dia, numa entrevista a
um jornal assim se manifestou: “Eu já estou cansado, às vezes minha memória
falha. Mas faço questão de receber os jornalistas. Nada no mundo funciona sem a
comunicação. Ela é fundamental para difusão do Evangelho. Eu levei isso muito a
sério na minha vida religiosa, instalei rádios, escrevi em jornais, dei muitas
entrevistas para TV. Quando eu não podia ir ao local, chegava às pessoas pelos
meios de comunicação”.
A notícia de sua morte, ocorrida
às 22h30 do dia 9 de julho teve repercussão internacional. O papa Bento XVI
assim se manifestou ao povo brasileiro enviando um comunicado ao arcebispo do
Rio de Janeiro: “Recebida a triste notícia do falecimento do venerado cardeal
Eugenio de Araujo Sales, depois de uma longa vida de dedicação à Igreja no
Brasil, venho exprimir meus pêsames a si e aos bispos auxiliares, ao clero e comunidades
religiosas, e aos fiéis da arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro, que
por três décadas teve nele um intrépido pastor, revelando-se autêntica
testemunha do Evangelho no meio do seu povo.
Dou graças ao Senhor por ter dado
à Igreja tão generoso pastor que, nos seus quase 70 anos de sacerdócio e 58 de
episcopado, procurou apontar a todos a senda da verdade na caridade e do
serviço à comunidade, em permanente atenção pelos mais desfavorecidos, na
fidelidade ao seu lema episcopal:
“Impendam et superimpendar” (“Darei o que é
meu, e me darei a mim mesmo pelas vossas almas”). Enquanto elevo fervorosas
preces para que Deus acolha na sua felicidade eterna este seu servo bom e fiel,
envio a essa comunidade arquidiocesana, que lamenta a perda dessa admirada
figura; à Igreja no Brasil, que nele sempre teve um seguro ponto de referência
e de fidelidade à Sé Apostólica; e a quantos tomam parte nos sufrágios,
animados pela esperança da ressurreição, uma confortadora bênção apostólica”.
Todos sabem que a missão dos
cardeais é serem conselheiros dos papas. Dom Eugenio além dessa missão nutria
amizade com os sumos pontífices João Paulo II e Bento XVI. Acolheu o papa João
Paulo II por duas vezes em sua visita ao Brasil. E uma terceira, quando de sua
escala técnica ao viajar à Argentina para uma visita àquela nação.
Um cardeal deve sempre colaborar
com o papa na construção de um diálogo com a humanidade. O cardeal é consultor
de um papa. Por isso a Igreja Católica, com leveza institucional, continua
sempre crescendo e mostrando sua força, pois é feita de homens e mulheres em
sua riqueza e fraqueza, reconhece suas crises e encruzilhadas, e realiza a
vontade de Deus sempre, com sabedoria, ultrapassando fronteiras.
Dom Eugenio teve sempre estreita
amizade e confiabilidade com os papas que passaram por sua vida, desde Paulo VI
até Bento XVI. Muito bem, lembrei-me, ao comunicar sua morte, primeiramente por
torpedos aos colaboradores mais próximos por volta das 23h30, e depois através
do Twitter à 0h40 da madrugada do dia seguinte, quando afirmei que dom Eugenio
foi um homem marcante na história da Igreja Católica no Brasil junto aos
refugiados e sofredores. Foi também desta forma que ele serviu a Jesus Cristo.
Dom Eugenio foi, é e sempre será
a referência da Igreja no Rio de Janeiro. Coube a ele, numa carta fraternal,
pedir ao soberano pontífice Bento XVI que a sua amada cidade do Rio de Janeiro
fosse escolhida para a JMJ Rio2013. E a sua carta ecoou em Madri, quando o papa
Bento XVI anunciou e confirmou a cidade do Rio como sede da JMJ 2013. Pequenos
gestos como estes demonstram que dom Eugenio é o nosso patriarca: aquele que
nos conduziu para os caminhos de Deus, sempre fiel à Igreja e ao papa.
Antes de surgir a vocação ao
sacerdócio, dom Eugenio pensava em ser engenheiro agrônomo. Coincidência ou
não, acabou sendo um grande engenheiro nas obras do Reino de Deus.
A pomba que
acompanhou o seu féretro recorda de um lado a sua preocupação com a vida rural,
com a natureza, inclusive onde ele residiu, no Sumaré, em plena Floresta da
Tijuca, e depois a sua procura pela verdadeira paz. Ele edificou consciências e
pessoas que continuaram o exercício de apresentar os sinais do Reino de Deus.
Homem destacado, amado e nem sempre compreendido, mas preferido por Deus,
porque Deus o preferiu.
Grande empreendedor na arquidiocese do Rio de Janeiro e
hoje um intercessor de todos os católicos do Brasil lá no céu. Como ele mesmo
disse em seu testamento: “No céu, onde espero ser acolhido por meu Pai, o
Senhor Jesus e Maria, procurarei retribuir tudo o que recebi”.
Fonte: http://www.jb.com.br
* Dom Orani João Tempesta,
cisterciense, é arcebispo do Rio de Janeiro.
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