A recepção do Vaticano II na América Latina
O Concílio Vaticano II mudou a
Igreja Católica, especialmente na América Latina. É o que afirma Leonardo Boff,
um dos pais da chamada Teologia da Libertação.
Hoje, aos 73 anos de idade, o
teólogo e escritor brasileiro continua opinando sobre assuntos religiosos,
éticos ou ecológicos. Convidado pela swissinfo.ch, Boff escreve sobre esse
importante momento histórico da Igreja.
O Concílio Vaticano II
(1962-1965) foi a resposta tardia, mas verdadeira, quinhentos anos depois, à
Reforma protestante do século XVI. Esta clamava por reformas na Cabeça
(hierarquia) e nos membros (cristandade). E nunca viera. Finalmente os tempos
maduraram e ela veio. Por isso o Concílio representa uma ruptura do curso que a
Igreja Católica vinha percorrendo por séculos.
Era uma Igreja transformada em
fortaleza sitiada, defendendo-se de tudo o que vinha do mundo moderno, da
ciência, da técnica e das conquistas civilizatórias como a democracia, os
direitos humanos e a separação entre Igreja e Estado. O Papa Pio XII (+1958)
foi o último representante do sonho medieval da Igreja que havia se transformado
num verdadeiro pesadelo coletivo e um corpo estranho dentro do mundo atual.
Mas uma lufada de ar fresco veio
de um Papa ancião do qual não se esperava nada: João XXIII (+1963). Ele abriu
portas e janelas da Igreja. Disse: ela não pode ser um museu respeitável; ela
tem que ser a casa de todos, arejada e agradável para se viver.
Recepção
Em primeiro lugar o Concílio
Vaticano II representou, na linguagem cunhada pelo Papa XXIII, um
“aggionamento”, quer dizer, uma atualização e uma reconstrução de sua auto
compreensão, de suas instituições, de sua linguagem de seus ritos e do tipo de
presença no mundo.
Não se trata aqui de sumariar os
elementos principais introduzidos pelo Concílio. Interessa-nos como este
“aggiornamento” foi acolhido e traduzido pela Igreja latino-americana.
A esse
processo se chama de recepção que nunca é uma mera adaptação ou aplicação das
decisões oficiais, mas uma releitura e um refazimento das intuições conciliares
dentro do contexto latino-americano, bem diferente daquele europeu no qual se
elaboram todos os documentos. Enfatizaremos apenas alguns pontos essenciais à
moda de uma leitura de cego que capta só o que é relevante.
O primeiro, sem dúvida, foi a
profunda mudança de atmosfera eclesial: antes predominava a Grande Disciplina,
a uniformização romana e o ar sombrio e severo da vida eclesial. As Igrejas da
América Latina, da África e da Ásia eram Igrejas-espelho da Igreja Romana. De
repente começaram a sentir-se Igrejas-fonte.
Podiam se inculturar e criar
linguagens novas. Por isso, agora se irradia alegria, entusiasmo e coragem de
criar. Finalmente a Igreja Católica encontrou seu lugar dentro o mundo de hoje
participando de suas alegrias e tristezas, de suas busca e avanços.
Visão social
Em segundo lugar na América
Latina se processou uma redefinição do lugar social da Igreja. O Vaticano II
foi um Concílio universal, mas na perspectiva dos países centrais e ricos. Isso
se nota no seu documento pastoral, o mais aberto, a Gaudium et Spes no qual se
definiu a Igreja dentro do mundo moderno.
A Igreja latino-americana olha em
volta e se dá conta do submundo da periferia e da opressão. A Igreja deve se
deslocar do centro humano para as periferias sub-humanas. Se aqui vigora
opressão, sua missão deve ser de libertação e de transformação. Valorizaram-se
as palavras do Papa João XXIII um mês antes do Concílio: “a Igreja é de todos,
mas principalmente quer ser uma Igreja dos pobres”.
Esta viragem se traduziu em
Medellín (1968) na opção solidária e preferencial pelos pobres, contra a
pobreza e em prol da vida e da liberdade. Ela ganhou centralidade em Puebla
(1979) e se consolidou depois como a marca registrada da Igreja
latino-americana.
Em terceiro lugar é a
concretização da Igreja como Povo de Deus. O Vaticano II colocou esta categoria
antes daquela da Hierarquia. Para a Igreja latino-americana povo de Deus não é
uma metáfora; a grande maioria do povo é cristão e católico, logo é Povo de
Deus, gemendo sob a opressão como outrora no Egito.
Dai nasce a dimensão de
libertação que a Igreja assume oficialmente em todos os documentos de Medellín
(1968) até Aparecida (2009). Este visão da Igreja-povo-de-Deus ensejou algo
original da América Latina: as Comunidades Eclesiais de Base, entendidas como a
Igreja na base e a Igreja da libertação.
Em quarto lugar, o Concílio
entendeu a Palavra de Deus, contida nas Escrituras, como a alma da vida
eclesial, especialmente, da reflexão teológica. Isso foi traduzido na América
Latina pela leitura popular da Bíblia e pelos milhares e milhares de círculos
bíblicos. Neles os cristãos comparam a página da vida com a página das
Escrituras e tiram conclusões práticas, na linha da comunhão, da participação e
da libertação.
Direitos Humanos
Em quinto lugar o Concílio se
abriu aos direitos humanos. Na América Latina foram traduzidos como direitos
dos pobres e por isso, antes de tudo, direito à vida, ao trabalho, à saúde e à
educação. A partir dos direitos dos pobres, se entendem os demais direitos.
Em sexto lugar, o Concílio
acolheu o ecumenismo e o diálogo com as demais religiões. Na América Latina o
ecumenismo não visa tanto a convergência nas doutrinas, mas a convergência nas
práticas: todas as Igrejas juntas se empenham pela libertação dos oprimidos. É
um ecumenismo de missão.
Por fim dialoga com as religiões
vendo nelas a presença do Espírito que chega antes do missionário e por isso
devem ser respeitadas com seus valores.
Por fim cabe reconhecer: a
América Latina foi o Continente onde mais se tomou a sério o Vaticano II e mais
transformação trouxe, projetando a Igreja dos pobres como desafio para a Igreja
universal e para todas as consciências humanitárias.
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