Diversidade cultural no interior das Congregações – Por Alfredo J. Gonçalves
O século XIX foi fecundo em
Congregações religiosas, masculinas e femininas, com um caráter marcadamente
apostólico. Muitas delas tiveram seu berço numa Europa fortemente convulsionada
pela "era das revoluções” e a "era do capital” (Hobsbawn).
O contexto
febril e fabril do êxodo rural, das indústrias e das transformações
socioeconômicas era propício a uma nova sensibilidade diante das condições
sociais em que vivia grande parte da população. Sensibilidade que irá crescer
como uma árvore com diversos ramos: socialismo (Marx e Engels), obras de
caridade (Frederico Osanan) e as Congregações religiosas, apostolicamente
preocupadas com determinados grupos ou situações sociais onde a vida estava
mais ameaçada.
Essas novas Congregações são
fundadas pelos chamados "santos sociais”, homens e mulheres da Igreja
Católica, que, com seu olhar pastoral voltado para os desafios do mundo
moderno, podem ser considerados os precursores remotos do Concílio Ecumênico Vaticano
II.
Tal sensibilidade e tais obras encontrarão uma espécie de caixa de
ressonância na carta encíclica Rerum Novarum, do papa Leão XIII, de 1891,
documento inaugural da Doutrina Social da Igreja (DSI). Não é exagero afirmar
que a DSI, como dimensão social da Boa Nova de Jesus Cristo, atualizada para os
tempos modernos e contemporâneos, deve seu impulso inicial ao testemunho incansável
dos fundadores e fundadores desse novo estilo de vida religiosa: mística,
comunitária e apostólica.
Além de serem originárias da
Europa, as Congregações dessa época, por mais de um século, vieram renovando
seus quadros com jovens, noviços e noviços, daquele continente ou de
descendentes de europeus emigrados em outros países (Estados Unidos, Brasil,
Argentina, Colômbia, México, Austrália, Chile, etc.).
Os "canteiros de
vocações”, ainda que em novos países, tinham raízes na cultura europeia. Numa
palavra, mesmo estendendo sua missão por todo o planeta, seguiam sendo
Congregações eurocentralizadas. Pelo sangue ou pela formação, continuaram
filhas do iluminismo, visão científica do mundo que acompanhou a Revolução
Industrial, o nascimento do liberalismo e da economia capitalista, com seus
mais variados desdobramentos.
Desde algumas décadas, essas
mesmas Congregações encontram-se numa encruzilhada de natureza étnica. Da mesma
forma que mudou o rosto do mundo contemporâneo, hoje marcado pelo pluralismo
cultural e religioso, também está mudando o rosto das Congregações. Seus
membros adquirem novas cores, raças, línguas, costumes, valores e
contravalores. As casas de formação ganham um colorido cada vez mais multiétnico
e pluricultural.
Enquanto, por um lado, diminui sensivelmente o número de
candidatos e candidatas de origem europeia, por outro, aumentam em proporção
inversa as vocações de outras nacionalidades. Estas últimas, mais precisamente,
chegam dos países do Terceiro Mundo, Ásia, África e América Latina, com
destaque para México, Colômbia, Haiti, Filipinas, Indonésia, Vietnam, Angola,
Moçambique, Congo, Cabo Verde, entre tantos outros.
Do ponto de vista evangélico da
abertura ao "outro, estrangeiro e diferente”, estamos diante de uma
realidade mais rica, sem dúvida, mas igualmente mais desafiadora. De fato, as
diferenças entre povos, nações e culturas não nos empobrecem, ao contrário, nos
interpelam a um intercâmbio mútuo e enriquecedor.
Mas esse intercâmbio tem
exigências profundas de recíproca conversão e inculturação. Aqui, como lembra a
Erga Migrantes Caritas Christi, "não basta a tolerância e a convivência
pacífica, é preciso avançar para a escuta, a compreensão, o respeito e o
diálogo”. Trata-se de um passo lento, laborioso e não isento de contradições: o
processo que vai da multi-culturalidade à inter-culturalidade. Os prefixos
multi e inter-representam, respectivamente, uma coexistência mais ou menos
tolerável e um confronto sério que resulta num verdadeiro "diálogo de
valores e de almas”.
A complexidade do pluralismo
hodierno requer, efetivamente, um passo adiante além da folclorização de
culturas e costumes, tão comum e tão espetacularizada pelos meios de
comunicação social.
Empenhar-se para incorporar, por exemplo, as comidas
típicas, as danças, as roupas ou as canções de determinado povo é válido, em
princípio, mas o diálogo entre culturas é bem mais exigente. Deve-se passar das
ondas aparentes e superficiais, muitas vezes enganosas, às correntes
subterrâneas que, de fato, movem os povos. Em outras palavras, é preciso
ultrapassar o caminho curto da imitação e do folclore, adotando o caminho longo
do encontro profundo entre valores e contravalores.
Este último, se e quando
levado a sério, constitui um processo que purifica reciprocamente as culturas
em confronto. A imitação superficial do outro pode converter-se numa via aberta
ao diálogo, mas também pode bloqueá-lo, uma vez que, aparentando uma
inculturação já realizada, dispensa ulteriores esforços para o verdadeiro
encontro.
O termo em debate é esse:
inculturação. E o grande desafio, frente ao pluralismo crescente no interior
das Congregações, é construir comunidades religiosas na heterogeneidade.
Historicamente, as comunidades eram mais ou menos homogêneas em termos
históricos, culturais, linguísticos e até territoriais.
Os grupos heterogêneos
trazem novos valores, sem dúvida, mas exigem um longo processo de intercâmbio,
de respeito mútuo e de reconhecimento. Algumas casas de formação, por exemplo,
possuem cinco, seis, sete e até mais nações reunidas. Abre-se um ambiente
simultaneamente mais rico e diferenciado, mas também mais trabalhoso. Além da
dificuldade que isso traz para os formados, nem sempre os formadores estão
preparados para essa nova diversidade de pessoas, raças e costumes.
Ganha relevância a exigência de
uma dupla inculturação. De um lado, o esforço de inculturar a Boa Nova de Jesus
Cristo nas distintas raízes culturais de cada pessoa ou grupo que entra na
Congregação; de ouro lado, enquanto Congregação deixar-se permear pelos valores
novos que nos aportam grupos e pessoas com outras experiências civilizacionais.
A encruzilhada destes valores e contravalores diferentes, em última instância,
é a comunidade religiosa. É ali que visões de mundo distintas podem se
encontrar, confrontar, depurar-se e enriquecer-se mutuamente. De fato, o
encontro ou reencontro na prática comunitária cotidiana constitui o terreno fértil
para o crescimento recíproco, como também pode ser um terreno estéril, onde os
grupos ou pessoas se fecham em guetos cerrados. Aqui a própria convivência em
comunidade é o antídoto para a formação de guetos ou isolamento.
A abertura à diversidade étnica e
cultural no interior das próprias Congregações é atualmente um grande desafio
às famílias religiosas. Diante desse crescente pluralismo, expressões clássicas
como "fidelidade criativa”, "refundação e revitalização”,
"reencantamento do primeiro amor”, "identidade e renovação da vida
religiosa” e "volta às fontes” – adquirem uma nova impostação.
Se a
fidelidade ao carisma e à tradição da Congregação (tradição não em termos
pejorativos, mas enquanto herança positiva) representa a continuidade ao legado
do fundador ou fundadora, a criatividade deve abrir-se às novas formas de
pensar e a novos valores culturais, o que implica, necessariamente, rupturas
inevitáveis com a trajetória de cada família religiosa.
Está embutida aqui uma ruptura
necessária com um racionalismo conceitual, seguindo uma rígida lógica
científica, originário da concepção iluminista, que tem marcado nossas
experiências até as últimas décadas. Nada contra a ciência e menos ainda contra
a racionalidade. Ambas podem conviver com a religião e a vida religiosa. Fé e
razão constituem duas dimensões complementares, jamais excludentes. Não se
trata, portanto, de retornar ao obscurantismo medieval ou ao totalitarismo
político, religioso ou ideológico, que tantas vítimas deixaram pelo caminho, mas
de incorporar novas formas de viver, pensar, celebrar, festejar, etc.
Isso quer dizer que, sem deixar
de lado o racionalismo científico, o grande desafio é ampliar a matriz teórica
que está na base de nossas práticas, com novos elementos vindos, em especial,
da antropologia cultural, da etnologia, da psicologia, da estética, da
ecologia, e assim por diante.
Nossa matriz teórica, predominantemente
iluminista por vezes reduz a vida humana às dimensões política, econômica e
social, quando não estritamente economicista. Hoje, em particular na sociedade
dita pós-moderna, emergem outras dimensões do ser humano, o qual, por natureza,
é um mistério insondável. Basta ver, por exemplo, a explosão do sagrado em
plena sociedade contemporânea, onde imperam as leis da lógica e da matemática,
as máquinas de todo tipo, a informática e o mercado total.
Em conclusão, o desafio da
diversidade hodierna nos conduz à exigência de uma interculturação de mão dupla
ou em duas vias: por parte das Congregações, trata-se de reler o carisma,
renovando sua inspiração inicial no contexto pluriétnico das novas culturas.
Por parte destas, rever os próprios valores a partir das interpelações do
carisma continuamente atualizado. Por outro lado, ambas as partes devem
nutrir-se nas fontes evangélicas, onde a água é mais cristalina.
Fonte: http://www.adital.com.br
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