Professor analisa religiosos na ditadura – Por Cynthia Tavares


Investigar a ditadura responsável por longas horas de tortura e prisões de ‘subversivos'. Essa será a função de Leonildo Silveira Campos, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo

O docente ingressou na Comissão da Verdade, que apura crimes cometidos durante o regime militar (1964-1985). Campos integra Grupo de Trabalho dedicado a averiguar ligação de líderes católicos e protestantes com os militares. 

A primeira reunião ocorreu no começo do mês. O professor garante que o convite foi feito pela sua história política e que não há constrangimento pelo fato de ele trabalhar há 27 anos em uma intituição de ensino atrelada à Igreja Metodista. "É minha história política, os artigos que já publiquei mostrando o vínculo entre igreja e repressão", destacou. 

Durante o regime militar, ele ficou preso por 15 dias e foi torturado no Dops (Departamento de Ordem Política e Social). A Comissão não tem caráter punitivo e não pretende fazer ‘caça às bruxas'. Apesar disso, Leonildo acredita na validade do trabalho, que na sua visão, foi tardio.

"Ela tem espaço pedagógico que não deve ser desprezado, pois as novas gerações não sabem o que aconteceu e hoje desfrutam da liberdade", avaliou. Em entrevista exclusiva ao Diário, o docente recordou histórias e revelou a proximidade de líderes religiosos com militares em série de suas pesquisas. "Uma grande parcela dos pastores protestantes sentiam afinidade ideológica com o regime", afirmou o professor.

DIÁRIO - Como surgiu o convite para entrar no Grupo de Trabalho da Comissão Nacional da Verdade?

LEONILDO CAMPOS - O convite veio através do coordenador Anivaldo Padilha. Ele é meu amigo e pai do ministro da Saúde, Alexandre Padilha. Como tive passado político com problemas de prisão, eu sempre troquei figurinhas com o Anivaldo e ele precisava de alguém que tivesse ligação com o meio acadêmico. O Anivaldo Padilha descobriu quando voltou do exílio que um bispo o delatou para as autoridades dizendo que ele era subversivo. Esse bispo tinha carteirinha do Dops (Departamento de Ordem Política e Social) e deixou registrado no diário dele. O que levou o Anivaldo a prisão foi a denúncia acompanhada de um folheto relacionado com ação social e protesto estudantil. Estava escrito com a letra desse bispo: ‘essa moçada está indo longe demais e precisa dar um basta nisso. Por favor, tome providências'.

DIÁRIO - Qual foi sua atuação na época do regime militar?

LEONILDO - Estava no segundo ano da Faculdade de Teologia em 1969. A gente participava de passeatas. Em São Paulo tinha acabado de entrar em funcionamento a Oban (Operação Bandeirante). Eles tinham informações de que havia gente da Faculdade de Teologia envolvida com o (Carlos) Marighella em julho de 1969. Em agosto, eles acharam a ligação que procuravam: elo com Frei Betto, Frei Tito, a ala dos dominicanos. Eles atraem o Marighella e ele é assassinado. Quando eu fui preso, havia escrito uma carta para um colega de outra cidade e ele tinha envolvimento com pessoas que assaltavam bancos, mas não era gente ligada a subversão. Ele morava numa pensão quando prenderam seus colegas e, então, acharam minha carta, na qual eu falava que participava de passeatas e era seminarista. Por isso fiquei cerca de 15 dias preso. No quartel do Exército permaneci 10 dias e o fiquei alguns dias no Dops.

DIÁRIO - Houve tortura?

LEONILDO - A gente não gosta de falar sobre isso porque envolve questões psicológicas. O problema da tortura do suspeito é que o agente trabalha com um pressuposto e mantém uma hipótese. Eles prendem e batem no sujeito para que ele confesse. Choque elétrico e batem de novo. Até o ponto da confissão do crime para parar aquilo.Passava um tempo e vinha outra equipe de torturadores com outra hipótese, daí o sujeito começava a se contradizer. A pessoa morre em consequência da tortura, porque não consegue provas que as histórias são verdadeiras. De fato, elas não são, pois foram criadas na cabeça do torturador.

DIÁRIO - Como está sendo feito o trabalho na comissão?

LEONILDO - Tivemos a primeira reunião. Fizemos o levantamento atual de questões como: quais são as possibilidades de desenvolver pesquisa aprofundada, quais temas mereceriam destaque. No começo do mês teremos reunião com um grupo pequeno: Paulo Sérgio Pinheiro, Anivaldo, eu e o Padre José Oscar Beozzo. Vamos definir as tarefas que serão realizadas. Temos que oferecer um relatório sobre as igrejas cristãs de um modo geral para a Comissão Nacional da Verdade até maio de 2014.

DIÁRIO - O trabalho será focado somente na atuação cristã?

LEONILDO - Houve uma discussão sobre que tipo de igrejas e que tipo de cristãos seriam pesquisados. Ficou definido que seria investigado as igrejas tradicionais: católicas e evangélicas.

DIÁRIO - Existem casos que já foram levantados na reunião?

LEONILDO - Fizemos referência a um grupo que atuava dentro da Universidade Presbiteriana Mackenzie pertencente ao CCC (Comando de Caças aos Comunistas). Eles introduziram armas na universidade e trocaram tiros com alunos de Filosofia da USP (Universidade de São Paulo). De um lado era o Mackenzie e de outro lado era a Faculdade de Filosofia, na Rua Maria Antônia (Vila Buarque).

DIÁRIO - Então, as igrejas estavam ligadas diretamente ao regime militar?

LEONILDO - O que chama atenção é a existência de várias pessoas do meio protestante ligadas aos grupos que questionavam a ditadura e outros que faziam parte da repressão. Conheci um pastor que foi até a minha cela. Estávamos com doze presos. Ele bate na cela e pergunta: ‘quem é o seminarista protestante?'. Me levantei e disse que era eu e perguntei o porquê. Daí ele disse: ‘trouxe uma Bíblia para você ler para esses comunistas safados e ver se algum deles se converte'. O Ricardo Zarattini estava comigo. Ele estava muito machucado, com hematomas pelo corpo inteiro. Ele conseguiu se levantar foi até a grade e falou: ‘o senhor não tem vergonha na cara.Tortura presos durante a noite e durante o dia traz Bíblia para preso ler. Isso não dói na sua consciência religiosa?'. O pastor disse: ‘Não. Para quem quiser se converter, eu tenho a palavra de Deus. Para quem não quiser, eu tenho outra alternativa'. Ao abrir o paletó, ele tinha uma pistola. Esse homem era um pastor Batista.

DIÁRIO - O engajamento dos líderes religiosos com os militares era intenso?

LEONILDO - Uma grande parcela dos pastores protestantes sentiam afinidade ideológica com o regime. Os militares alegavam que tinham tomado o poder no Brasil para impor uma moralidade, combater a corrupção e o comunismo. Aqui no Grande ABC existia um grupo forte da Adesg (Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra). Eles atraíam médicos, jornalistas, pastores, professores para fazer o curso. Houve determinado momento em que líderes religiosos ocupavam cargos importantes na chefia dos setores de Segurança do Exército. Eram pessoas que realmente tinham poder. O regime se sustentava em cima de duas coisas importantes. Por um lado, censura e propaganda, e do outro, repressão. Na década de 1970, o chefe do Serviço Secreto era um pastor presbiteriano e o chefe da propaganda também. Os evangélicos de modo geral tiveram papel importante apoiando toda luta anticomunista desde os anos de 1940. Era algo forte nos templos.

DIÁRIO - De que forma era feito esse apoio?

LEONILDO - Geralmente nas pregações. O protestante, de maneira geral, era muito anticomunista. Quando vem o movimento militar, em 1964, derruba o governo e se apresenta como gente que estava salvando o Brasil do comunismo, foi um fator de atração dos evangélicos para apoiar o regime. E quando a ditadura começa a lutar contra os guerrilheiros urbanos, bandidos, subversivos. A repressão coincide com a repressão.




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