O direito ao sagrado – Por Paulo Rosenbaum
Há um problema sério com a
abordagem dos assuntos políticos no Brasil: são sempre os mesmos. Isso tolhe a
criatividade dos articulistas e analistas. Na era geral da inconsequência, tudo
vai virando uma coisa só.
Observem que na guerra das versões o peso das
palavras se emancipou do conteúdo, e tudo depende do poder de quem opina. Os
argumentos não valem mais, o que conta é o cacife do partido, a força do time,
as armas da facção. A verdade é que estamos perdendo a capacidade de análise e
entramos de cabeça na guerra de versões. Ficamos reduzidos a um medíocre
“contra e a favor”.
O julgamento que exaustivamente comentamos já teve tanto o
veredito de “político e fruto da mídia golpista” como “o país está sendo
passado a limpo”. Como a verdade é um valor oscilante, o mais provável é que
nem um nem outro.
Quem ainda pode aturar mensalão
com seus círculos infernais? Sucedido por desmandos e conjuntura excepcional
desperdiçada? Estamos carecas de saber que, unha e carne, poder e o mal feito
chegaram às vias de fato.
As mentiras e a negação sistemática são apenas
desdobramentos do caos disparado quando se tenta normatizar o vale-tudo. Por
isso mesmo temos que reconhecer, já deu. Se ainda prezamos o presente, nossa reivindicação deveria ser mudanças profundas no bioma político-cultural.
Precisamos de gente que lidere
sem se identificar com liderança, humanistas não catedráticos que capturem o
que as pessoas sentem, planejadores que entendam o que fazem e legisladores que
coloquem as gerações futuras em perspectiva. Não faria nada mal que os
intelectuais falassem o não óbvio.
Partidos que reconhecessem seus erros pelo
bem coletivo. Pois, enquanto o poder republicano estiver nas mãos de gente que
bate no peito e se comporta corporativamente, estamos condenados. Condenados a
postergar um comportamento republicano.
Não se trata de achar que o
passado é melhor que o futuro. Mas também não se trata de viver só pelo futuro.
O presente não merece ser mero resíduo, aquilo que sobra do embate entre o que
foi e o que será. Se fôssemos resumir nossa era: ganhamos agilidade, perdemos
espontaneidade, adquirimos instrumentos científicos, perdemos a sabedoria,
temos abundância do comum, nossa carência é do raro, individual e
característico de cada um.
Estamos sendo esmagados, e entre
as façanhas da produção incessante, o abusivo acúmulo de matéria e supérfluos.
Criamos mais do que podemos consumir, enquanto nosso apetite vira insaciável.
Mas não será desta vez que o mundo acabará, ainda que haja muito para moer e
muitos moinhos por enfrentar.
O que hoje nos aflige
coletivamente é a impossibilidade imediata de acesso ao bem-estar. Em qualquer
de suas versões. Ele teria que ser palpável, mas não conduzido só pela
realidade objetiva.
Não será desta vez que o mundo
vai acabar
Em qual mundo podemos exprimir
melhor nossas fragilidades, idiossincrasias e talentos? No do Manifesto
Comunista? No planeta das lojas de grife? Quem sabe, entrando na competição
selvagem, vestindo a camisa da empresa e dando rasteiras por cargos? Nos
estádios de futebol, nas livrarias, nos templos?
No filme Cosmópolis, um
magnata yuppie qualquer, gênio das finanças, diante do tédio infinito, passa o
dia criando demandas para preencher seu insuportável ócio. O filme pode ser
controvertido, mas arranha uma metáfora oportuna. Há um oco extraordinário em
nossa civilização, e, ao que se saiba, originalmente não nascemos empalhados.
No século marcado pelo
ressurgimento das religiões e pelo renascimento de uma busca que transcende
ideologias políticas, reina um sentimento paradoxal, difícil de assumir: pelo
que lutar? Se nem mesmo as tradições podem oferecer respostas, tampouco sabemos
se ainda as queremos. Decerto, não as mesmas de sempre.
Estamos fartos das
explicações standard da política, da autoajuda, do ceticismo e do fanatismo, do
conservadorismo e da vanguarda. Nem a
academia nem as artes acompanham a velocidade da sociedade. A alienação é um
consolo, mas está longe de ser uma saída.
Que tal reconquistar um direito,
que, por prurido intelectual ou endurecimento da alma, nunca foi reivindicado?
O direito ao sagrado.
Fonte: http://www.jb.com.br
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