Alcoolismo é uma forma de religião, dizem psicanalistas - Por Iara Biderman
Baseados em dez anos de pesquisa
com mais de 5.000 pessoas em tratamento para alcoolismo, os autores chegaram à
conclusão de que o alcoólatra é, antes de tudo, um fanático de uma religião
individual e autocentrada.
O que define o alcoólatra não é a dependência
química, afirmam os psicanalistas Antônio Alves Xavier e Emir Tomazelli,
autores de: "Idealcoolismo" (Casa do Psicólogo).
Baseados em dez anos de pesquisa
com mais de 5.000 pessoas em tratamento para alcoolismo, os autores chegaram à
conclusão de que o alcoólatra é, antes de tudo, um fanático de uma religião
individual e autocentrada.
Em entrevista à Folha, os dois
explicam sua teoria e o tratamento para alcoolismo que criaram a partir dela.
Folha - Por que os srs. comparam
o alcoólatra a um fanático religioso?
Antonio Alves Xavier - Porque ele
transforma a bebida em uma substância divina. Ao beber o 'deus álcool', comunga
com essa substância e acredita que vira deus, não tem que enfrentar as
limitações e frustrações de ser humano. Vira todo-poderoso e se entrega a esse
ídolo que o faz se sentir onipotente.
No livro, isso é definido como
uma forma de religião degradada. O que significa?
Xavier - Não há uma distância
entre o crente e seu deus. Quando alguém toma a si próprio ou a alguma coisa
existente no mundo como deus, cria uma religião degradada: a pessoa adora
falsos ídolos, que, no caso do alcoólatra, é a bebida. Então acaba sendo uma
idolatria.
A medicina trata como dependência
química...
Xavier - A forma segundo a qual
vem sendo tratada a questão do álcool e das drogas tem sido muito útil, mas é
uma maneira sobretudo biologicista e medicinal de abordar o problema.
Aprendemos muito com a medicina e as pesquisas farmacológicas, mas a nossa
proposta é entender o papel da cultura e do psiquismo na construção do vício.
Emir Tomazelli - Não adianta,
para o tratamento, pensar apenas que o corpo se vicia num sistema químico. O
que interessa, para nós, é o que a pessoa faz, do ponto de vista psíquico, com
a substância química que ingeriu.
O que o alcoólatra faz?
Tomazelli - Deixa de ser humano,
de se responsabilizar pelo que faz com sua vida -a culpa é do álcool, não dele.
E acaba perdendo sua parte ética, porque fica submerso em sua individualidade,
sem considerar o outro.
Xavier - Ele é um indivíduo
extremamente narcisista, não entra em contato e, vamos falar português claro, é
um chato. Mas nós gostamos muito de trabalhar com alcoólatras, porque
encontramos uma técnica de tratamento fundamental para a doença.
Qual é essa técnica?
Xavier - Chamamos de choque de
humanidade. Tentamos dar referências concretas para ele perceber que é humano,
limitado, frágil.
Tomazelli - Nós queremos que ele
tenha culpa, mas não aquela autocomiseração narcisista de quem acha que não
precisa se tratar. É uma culpa responsável. Ele precisa sentir tristeza, isso
torna as pessoas mais humanas.
Não há risco de ele entrar em
depressão?
Tomazelli - É uma tarefa difícil,
mas não estamos falando de uma tristeza insuportável. É fazer a pessoa entrar
em contato com pequenas doses diárias da realidade, na qual a alegria é
constituída por um pouco de tristeza, ao contrário da euforia produzida pela
bebida ou outras drogas.
Xavier - O álcool é uma droga
potentemente depressiva. No primeiro momento, é estimulante, causa euforia. A
excitação é usada pelo alcoólatra como calmante. Ele não precisa enfrentar suas
angústias. O alívio vindo pelo excesso de estímulo faz o sujeito pirar, leva à
autopunição e à depressão.
A família é fundamental no
tratamento?
Tomazelli - Pode ajudar, mas
nossa técnica é uma grande chance de o sujeito tomar sua loucura em suas
próprias mãos.
Xavier - Em muitos casos, o
alcoólatra é o para-raios da família. Todas as angústias individuais estão
projetadas nele. Na hora em que ele vai sarando, os familiares são obrigados a
lidar com suas próprias angústias. Por isso, não é incomum a família sabotar o
tratamento.
E qual o papel da sociedade?
Xavier - A sociedade que instiga
o alcoolismo é a mesma que o reprime. O prestígio que dá às bebidas é uma forma
de idolatria. Se prestarmos atenção, prateleiras de bar, muitas com estátuas de
santos no meio, são parecidas com um altar.
Tomazelli - Outro problema é que
a sociedade é muito complacente, trata o alcoólatra com tapinhas nas costas. A
própria ideia da dependência química ajuda a tirar a responsabilidade pessoal,
como se o vício fosse uma fatalidade da natureza.
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