Diálogo com e entre religiões – Por Joaquim Franco
O encontro de culturas implica a
dimensão religiosa. O contexto religioso é inseparável da organização social e
o diálogo com e entre religiões ou sensibilidades religiosas faz parte da
história das civilizações.
Os momentos negros, em que o confronto de
interesses religiosos e geopolíticos foi acendalha de guerras e genocídios, são acompanhados também, e sobretudo, por gestos de um surpreendente humanismo.
É o caso do curto período de
pragmatismo religioso e político do Al-andalus, ao qual se sucedeu o debate em
Barcelona entre Pablo Christiani, judeu recém-convertido ao cristianismo, e o
rabi Nachmanides que, com alguma liberdade, expuseram no século XIII as suas
ideias livremente. Ou do alemão Nicolau de Cusa que contribuiu, no dealbar do
Renascimento, para um aceso debate teológico e filosófico, e foi à Grécia
defender a união entre católicos e ortodoxos.
Tome-se ainda como exemplo o
reinado do imperador mongol Jalaluddin Akbar, que, na transição do século XVI
para o século XVII, desenvolveu a arte e a cultura e promoveu o debate sobre
questões religiosas, em certa medida motivado pelo encontro Ocidente-Oriente,
ampliado por trocas comerciais facilitadas pelo caminho marítimo para a Índia.
E que dizer dos jesuítas que
lançaram uma dinâmica de evangelização no Oriente e nas Américas, que
valorizava culturas e costumes locais? Dentro das circunstâncias do
proselitismo de Roma, foi uma autêntica revolução.
Um salto no tempo permite-nos
chegar ao Concílio Vaticano II, decreto sobre o ecumenismo (Unitatis
Redintegratio), a declaração sobre a liberdade religiosa (Dignitatis Humanae)
ou a declaração sobre as religiões (Nostra Aetate) e, mais recentemente, aos
encontros de Assis promovidos pelo papa Woytila.
A verdade é que a história do
cristianismo está impregnada de pluralidade. Desde as origens, que as
comunidades cristãs vivem a tensão da diferença, na interpretação e na
vivência. A multiplicação de comunidades cristãs em “terreno” gentio, abrindo o
“seguimento” a outras culturas além da judaica, desencadeou inevitáveis
processos de discussão e discórdia.
Os primeiros tempos da institucionalização
eclesial estão marcados por este cenário, a começar pela legitimação das
igrejas gentias face à igreja-mãe de Jerusalém e os concílios que “normalizaram”
a Igreja nos primeiros séculos resultaram também em processos de exclusão ou
segregação, na sombra da organização política e social.
Na perspectiva católica, já
clarificada pelo papa Ratzinger o “diálogo” entre confissões cristãs
desenvolve-se para realçar o essencial que é comum, sem esquecer, mas
desvalorizando, diferenças insanáveis. No contexto europeu de uma certa
descristianização, corresponde à necessidade de reforçar os valores primordiais
cristãos frente a um secularismo “excessivo” ou até a um “ateísmo agressivo”,
para usar expressões de Bento XVI. Neste aspecto não há divergências.
Não é
difícil antever o efeito de cascata global que pode ter uma descristianização
na Europa. O cristianismo ideológico tem boa parte dos alicerces no cristianismo
institucional e histórico de Roma, de Inglaterra e das igrejas da Reforma.
Sem desenvolvimentos teológicos
de relevo, o aparente arrefecimento da dinâmica ecuménica coincide com a ideia
de que o conceito de “irmãos separados” não faz sentido numa Europa e num Mundo
marcados por uma grave crise, que exige o vigor religioso como contributo para
uma retoma ética, que, simultaneamente, se assuma diante do relativismo moral.
Arrisque-se um paralelo
histórico. As depauperadas comunidades cristãs de Jerusalém, no primeiro
século, levaram ao desenvolvimento de uma rede gentia de solidariedade, sobre a
qual se constituiu o critério paulino de caridade e unidade. Unidade numa
Igreja construída sob os auspícios de um combate à pobreza, valorizando o
critério ecuménico a partir da dignidade humana. A dimensão ecuménica no
dealbar do séc. XXI deveria recuperar, em certa medida, esta lógica.
Um
objectivo comum, uma motivação convergente que atenua as diferenças perante
valores maiores, com consequências nas estruturas de relacionamento económico,
político e social.
Em ambiente de encontro e
diálogo, as religiões sustentam a crítica à utilização da religião para fazer a
guerra, valorizam a paz e a justiça, temas que não são exclusivos da dimensão
de fé, mas que, no actual contexto religioso e global, se apresentam com grande
relevância.
O discurso político relaciona
cada vez mais a insegurança com a imigração, a imigração com a religião, a
religião com a segregação. Desmontar esta equação é o novo e prioritário espaço
das religiões.
Por outro lado, o debate sobre a religião na sociedade europeia
não se limita à reflexão cristã, nem se esgota com o Islão. Tem de ser
inclusivo, culturalmente aberto e disponível, promotor da maturidade exegética
e da razão, motor de reacção inteligente a um ateísmo mais violento que exorbita
na secularização.
Nos meios editoriais, surgem
militantes ateus ou agnósticos com uma nova atitude em relação às religiões,
contrariando um ateísmo agressivo que alastra. Abordam-se temas como
comunidade, bondade, educação, ternura, pessimismo, arte ou arquitectura. Sem
negar um certo oportunismo, considera-se que as religiões “são úteis,
interessantes e consoladoras” e é possível “importar algumas das suas ideias
para o reino secular” (in Bíblia para ateus, Alain de Botton).
O ecumenismo – oikuméne, Terra
habitada – ganhou expressão inédita em Outubro de 2011, com o terceiro encontro
de Assis. Participaram, a convite de Bento XVI, ateus e agnósticos.
O filósofo
mexicano Guillermo Hurtado disse que “o diálogo entre crentes e não crentes
neste momento da história, em que estamos submersos em uma crise muito grande”
permitirá encontrar “soluções comuns para os problemas comuns”. Reconhecendo
haver na dinâmica ateísta alguns sectores “beligerantes jacobinos, que
pretendem anular a religião”, entende haver espaço para os ateus e agnósticos
sensíveis às “manifestações de religiosidade”, com os quais é possível
estabelecer diálogo com os crentes.
A francesa Júlia Kristeva,
filósofa e psicanalista, acrescenta, por seu lado, que chegou o momento “ de
retomar os códigos morais do curso da História, renovando-os para as novas
situações”, pelo que é necessário procurar a cumplicidade entre o humanismo
cristão e o iluminismo, para que o “humanismo possa desenvolver-se e
refundar-se”.
Sendo as religiões uma parte integrante
e inseparável da identidade colectiva e pessoal, deixam marcas nas estruturas,
formas e conteúdos de relação. Não só para as que a elas aderem, os crentes, mas para o todo cultural que não pode ler-se sem a dimensão religiosa,
co-construtora e co-responsável pelos códigos de compreensão, sobretudo éticos,
que nos trouxeram até aqui.
A velha batalha entre a ciência e
a fé, começa também perder sentido. A fé ajeita-se à hermenêutica científica e
a ciência recorre aos enigmas da fé, quanto mais não seja para manter um
objectivo. São duas faces da mesma moeda.
Social e politicamente, o diálogo
com e entre religiões assume-se como imprescindível. Se o fenómeno religioso
institucional não abrir espaço à reflexão e não fizer parte do debate público,
a experiência religiosa há-de sujeitar-se à metamorfose, reforçar-se e
revelar-se, já está a revelar-se!, na sua plasticidade, dispersa e por vezes
marginal, mais individual que comunitária, susceptível e multiplicada por
caminhos imprevisíveis, tendencialmente menos racionais.
(Nota: Muitas vezes, Etiano
Branco, enquanto coordenador da SIC Online, recebeu e publicou os textos de
opinião deste autor. Também fez sugestões e trocou ideias, ajudando a melhorar
a “prosa”, com a qual tinha particular cuidado e o conteúdo. Etiano partiu
para a derradeira viagem! Fica a experiência, fantástica, de ter partilhado
este lapso de tempo com um ser humano de invulgar estirpe. A devida homenagem…)
Sugestões de leitura: Deus,
dinheiro e consciência (Paulinas) – Anselm Grun e Jochen Zeitz, e São Vicente
(Traduvários) – Paulo Farmhouse Alberto.
Fonte: http://sicnoticias.sapo.pt
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