Por que a religião ainda pode salvar a nossa cultura - Artigo de Camille Paglia
As fés são vastos sistemas de
símbolos que falam sobre nós. É daí que as artes visuais devem recomeçar,
evitando o kitsch.
A opinião é da escritora
norte-americana Camille Paglia, ex-professora da University of the Arts in
Philadelphia.
O texto que segue é um trecho da introdução de seu livro Glittering
Images: A Journey Through Art from Egypt to Star Wars. O artigo foi publicado
no jornal La Repubblica, 20-01-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
A arte é um casamento entre o
ideal e o real. A criação artística é um ramo do artesanato. Os artistas são
artesãos, mais próximos dos carpinteiros e dos soldadores do que dos
intelectuais e dos acadêmicos, com a sua empolada retórica autorreferencial. A
arte usa os sentidos e fala aos sentidos. Afunda as suas raízes no mundo físico
tangível.
O pós-estruturalismo, com suas
origens linguísticas francesas, tem a obsessão pelas palavras e, por isso, é
incompetente para iluminar qualquer forma artística fora da literatura. O
discurso sobre a arte deve se aproximar dela e descrevê-la nos seus próprios
termos. É preciso encontrar um delicado equilíbrio entre o mundo visível e o
invisível. Quem subordina a arte à agenda política contemporânea é tão culpado
por literalismo rígido e por propaganda quanto um pregador vitoriano ou um
burocrata stalinista qualquer.
Uma das razões da atual
marginalização das belas artes é que os artistas se voltam muito frequentemente
a outros artistas e perderam o contato com as pessoas comuns, das quais
desprezam e zombam os gostos e os valores.
A maior parte dos artistas
norte-americanos são progressistas que têm um contato mínimo, senão nulo, com
quem pensa diferente deles. O progressismo militante antiestablishment e
defensor da liberdade de expressão dos anos 1960 (com a qual eu me identifico
fortemente) transformou-se no utópico mundo ideal da classe dos profissionais
afluentes, com os seus vagos impulsos filantrópicos e uma estranha passividade
com relação a governo pomposo e autoritário.
Uma ortodoxia monolítica
abandonou os artistas em um gueto de opiniões óbvias e os cortou fora das
ideias novas. Nada é mais banal do que o dogma progressista, segundo o qual um
valor chocante automaticamente confere importância a uma obra de arte. A última
vez que isso foi verdade foi, talvez, no fim dos anos 1970, com as fotografias
homoeróticas e sadomasoquistas de Robert Mapplethorpe. Mas a cultura seguiu em
frente. No século XXI, buscamos o significado, não a sua subversão.
Os conservadores também, por sua
vez, pecaram contra a cultura. Apesar dos seus toques de trombeta por um
retorno da educação ao cânone ocidental, eles se comportaram como filisteus
provincianos com relação às artes visuais. Embora haja muitos críticos de arte
sofisticados entre os conservadores urbanos, o impulso do movimento conservador
norte-americano se alimentou sobretudo com as regiões agrárias onde prospera o
cristianismo evangélico.
O protestantismo tem uma história de iconoclastia:
durante a Reforma no norte da Europa, as estátuas das igrejas e os vitrais
coloridos foram sistematicamente destruídos por serem idólatras. Com relação ao
catolicismo romano, tão rico em arte, o protestantismo norte-americano
tradicional é visualmente pobre. As suas imagens de Jesus como Bom Pastor são
muitas vezes artisticamente tão fracas que beiram o kitsch.
A maior parte dos conservadores
atua em um clima que é indiferente ou hostil com relação à arte. Os principais
escritores e críticos conservadores parecem cegos diante da intrincada
interconexão entre arte e política na antiga Grécia que inventou a democracia.
O nu, baseado no estudo científico da anatomia, foi o grande símbolo do
individualismo ocidental que os gregos nos deixaram de herança, mas os
conservadores cristãos nunca permitiriam exibir nas escolas públicas os
heroicos nus da arte ocidental. O puritanismo norte-americano hesita na
suspeita conservadora de que há uma feitiçaria na beleza.
Por outro lado, uma quantidade
enorme da melhor arte ocidental foi intensamente religiosa, e os progressistas,
que queriam que os presépios fossem tirados das praças, objetariam, por sua
vez, contra a instrução doutrinal necessária para apresentar a iconografia
cristã na escola pública. Por isso, a educação artística foi obstaculizada nos
Estados Unidos, vítima do fogo cruzado da política.
Embora eu seja ateia, respeito
todas as religiões e as levo a sério como vastos sistemas de símbolos que
contêm uma verdade profunda sobre a existência humana. Embora em seu nome se
tenham cometido males, a religião tem sido uma força enorme de civilização na
história do mundo. Zombar da religião é algo pueril, sintomático de uma
imaginação atrofiada. Porém, essa posição cínica tornou-se de rigor no mundo
artístico, um motivo a mais para a banal superficialidade de grande parte da
arte contemporânea à qual não restou nenhuma grande ideia.
Fonte: http://www.ihu.unisinos.br
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