Ciências humanas sem vez – Por Leonardo Cazes


Uma polêmica ronda o programa Ciência sem Fronteiras (CsF), criado em dezembro do ano passado e que concede bolsas no exterior a estudantes de graduação e pós-graduação brasileiros. 

O CsF se divide em 18 áreas consideradas prioritárias, e a única que permitia a participação de alunos dos cursos de ciências humanas era a chamada indústria criativa. Contudo, um detalhamento de quais cursos seriam aceitos na área, realizado no fim de novembro, excluiu todos os ligados às áreas humanas. 

Fechou-se então a única porta aberta para o campo no Ciência sem Fronteiras. Agora, somente estudantes de cursos ligados a área tecnológica e biomédica podem participar do Ciência sem Fronteiras.

A medida provocou polêmica. Alunos que pretendiam concorrer a bolsas no ano que vem e já pagavam cursos de língua estrangeira se sentiram prejudicados. Eles recorreram à Justiça e conseguiram uma decisão favorável na primeira instância, que permite a inscrição, mas o Ministério da Educação (MEC) já avisou que vai recorrer. Várias entidades e pesquisadores ouvidos pelo GLOBO classificaram como “estranha” a posição do governo e dizem que houve “falta de compreensão” do papel das ciências humanas no desenvolvimento do país.

Programa vai dar 75 mil bolsas até 2015

O Ciência sem Fronteiras é uma das vitrines do governo Dilma. Seu objetivo é dar experiência internacional aos alunos, colocá-los em contato com centros de pesquisa de ponta e promover a criação de redes entre instituições do Brasil e do exterior. A meta é enviar 75 mil alunos até 2015, sendo 27.100 no modelo de graduação-sanduíche (quando o estudante passa parte do curso fora do país). Até agora, 21.418 bolsas já foram concedidas. Desse total, a área de indústria criativa teve 1.483 alunos beneficiados. Antes do lançamento do programa, as instituições brasileiras podiam fazer parcerias com universidades estrangeiras, mas os interessados eram obrigados a arcar com todos os custos de viagem e estadia.

Para o presidente da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), Gustavo Lins Ribeiro, que também é professor titular do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília (UnB), as ciências humanas, sociais e as artes são tão importantes para o desenvolvimento do país quanto as áreas tecnológicas e biomédicas. Na sua opinião, é preciso compreender a inovação como um fenômeno que não está restrito aos laboratórios.

Podemos dizer que as ciências e as engenharias são o hardware do desenvolvimento enquanto nós somos o software. O que seria de um país “desenvolvido” sem antropólogos e sociólogos para compreender suas diferenças, seus contrastes, formular imagens e narrativas sobre nós mesmos? Imagine se não houvesse advogados para manter e aperfeiçoar o estado de direito, economistas e administradores para compreender e gerir a vida econômica e institucional. A lista é extensa e poderia ser muito ampliada, afirma o professor. Temos que rever a concepção de inovação como um fenômeno exclusivamente restrito ao laboratório. As ciências sociais e humanas e as artes no Brasil têm demonstrado historicamente sua capacidade de contribuir sofisticadamente para tornar esse país um lugar melhor de se viver.

Benito Bisso Schmidt, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e presidente da Associação Nacional de História (ANPUH-Brasil), ressalta que a experiência no exterior seria muito benéfica para os graduandos das ciências humanas, e não apenas para alunos de áreas ligadas à tecnologia.

A decisão expressa uma visão estranha e estreita do que seja desenvolvimento científico. Nós (da ANPUH-Brasil) ficamos preocupados e chegamos a escrever para o Ministério da Educação pedindo a inclusão da área de humanas. Em uma concepção de ciência cada vez mais interdisciplinar, excluí-las é muito empobrecedor, critica Schmidt. O efeito da bolsa não se limita ao período passado no exterior, porque os alunos estabelecem redes de contato que permitem uma circulação do conhecimento, produzido aqui e lá, muito maior.

Capes alega que prioridades foram eleitas por comitê

Outra crítica comum é que o CsF reproduz desigualdades já existentes na distribuição de verbas para produção científica, com a área tecnológica e biomédica abocanhando parcela significativa de recursos. Na avaliação da presidente do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes), Marinalva Oliveira, que é professora de psicologia na Universidade Federal do Amapá, a exclusão das ciências humanas dá continuidade a esse movimento. Marinalva conta que a área sempre é preterida nos editais de financiamento por “não dar lucro”.

Nos últimos anos, a destinação para as ciências humanas nos editais sempre foi o mínimo possível. E, no fim das contas, o governo utiliza o argumento de que o campo não produz projetos de qualidade, diz a professora.

Procurada pelo GLOBO, a Capes informou, através de nota, que “não houve exclusão de cursos”, mas a “especificação de quais áreas eram pertencentes à indústria criativa”. A decisão do comitê executivo foi tomada “para evitar futuros problemas”.

De acordo com o órgão, não há previsão para a inclusão das ciências humanas no CsF. No mesmo texto, a Capes ressaltou que a premissa do programa é “fortalecer áreas consideradas deficitárias no Brasil”. A escolha de quais seriam elas cabe ao comitê de assessoramento e acompanhamento, composto por representantes de sete ministérios e quatro indicados por entidades privadas que participam do financiamento do projeto.

Marcio da Costa, professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), compreende que haja prioridade para carreiras tecnológicas e biomédicas, pois elas precisam de mais investimento.

Concordo que essas áreas precisam de mais investimento. O Brasil forma menos do que precisa nessas áreas, ao contrário das humanas, que formam mais do que a demanda. Mas deveria haver uma prioridade e não uma exclusividade, argumenta.




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