Quando artes plásticas e gastronomia se encontram


Muito além da natureza morta Alimentos e refeições retratados nas artes plásticas também têm facetas sociais e contestadoras. Em telas, esculturas e instalações, o homem usa inspirações culinárias para expressar sua forma de ver o mundo.

O homem encontrou maneiras distintas para se expressar por meio da pintura e da escultura. Das pinturas rupestres da pré-história à arte contemporânea, a comida se tornou parte integrante das obras. A partir dos hábitos alimentares, povos mostraram e ainda mostram as suas singularidades. Uma história que perpassa mudanças que começam nos alimentos brutos próprios da descoberta do fogo e da invenção da agricultura e chegam à comida massificada e industrializada do pós-guerra.

“À medida que os valores, as crenças e os hábitos sociais da humanidade foram se alterando, a forma como esse tema foi tratado mudou, mas, em menor ou maior grau, ele sempre esteve presente”, avalia Santa Bárbara Edwiges Bown-Jones, pesquisadora da Universidade da Califórnia. 

Na Grécia e na Roma antigas, por exemplo, a comida passou a ter uma ligação muito forte com a religiosidade. “Para os clássicos, cada deus tinha um alimento correspondente. Atena estava ligada às oliveiras, Baco, ao vinho e assim sucessivamente”, conta a especialista norte-americana. Assim, templos, esculturas e vasos dedicados à deusa da sabedoria utilizavam com muita frequência elementos como o azeite e as azeitonas, bastante presentes na cozinha grega e romana clássicas.

As simbologias relacionadas à comida também ganharam força. Para as religiões cristãs, o pecado é simbolizado por uma maçã. Antes de ser crucificado, Jesus teria compartilhado uma ceia com os apóstolos, e o paraíso, segundo a Bíblia, é um lugar onde “jorra leite e mel”. 

“O alimento, dentro do cristianismo, representou sentidos muitas vezes conflitantes (…) Se por um lado é um presente de Deus, também é uma via de pecado pelos demônios. A gula é um dos sete pecados capitais”, avalia Brown-Jones.

É por essa razão que, embora representada com frequência em contextos religiosos ou que remetam à pureza, como é o caso da obra Santa ceia, do italiano Leonardo da Vinci, e de A leiteira, do holandês Johannes Vermeer, por vezes a retratação da comida foi vigiada. 

“A natureza morta existia desde a antiguidade, contudo, na Idade Média, foi bastante perseguida pela Igreja, que acusava os artistas de incitarem o pecado da gula”, explica a historiadora norte-americana, em referência a um gênero artístico que perdura até os dias de hoje. A série As quatro estações, de Giuseppe Arcimboldo, ainda é um dos pontos altos da food art. O italiano renascentista utilizou frutas e legumes para representar fisionomias humanas.

Nos tempos modernos, a comida tornou-se massificada e enlatada, e o casamento entre gastronomia e arte seguiu o mesmo caminho. O mestre da pop art Andy Warhol representou um dos momentos mais contundentes da massificação artística e alimentar. O conjunto de 32 telas representando as latas de sopa Campbell tornou-se ícone da arte moderna. 

“Um dos preceitos em que o grupo de Warhol acreditava era que até mesmo os mais ordinários dos objetos têm uma mensagem artística”, conta a especialista. “Warhol nunca deixou claro se amava ou odiava a indústria cultural, de modo que não saberemos com certeza qual o objetivo dessa obra, em um sentido crítico”, completa. Independentemente de ser uma desaprovação ou um elogio à alimentação e ao consumismo moderno, a obra, atesta especialistas, é um testemunho de que nossa forma de comer mudou para sempre.

Ingredientes viram matéria

A relação entre arte e comida é tão intensa que, por vezes, ultrapassa os limites da representação. Hoje, os alimentos viraram matéria-prima direta das expressões artísticas. Como verdadeiros chefs, artistas plásticos utilizam ingredientes culinários para as mais diversas finalidades, desde questionar a relação do espectador com o mundo que o cerca até provocar memórias afetivas.

Na arte brasileira, um dos pontos altos da união entre comida e arte é a série: Crianças do açúcar, de Vik Muniz. Artista especialista em materiais alternativos, ele utilizou cristais de açúcar nas mais diferentes cores para retratar rostos infantis. O artista foi a St. Kitts, cidade localizada nas Ilhas São Cristóvão e Névis, no Caribe, onde a cultura da cana-de-açúcar é muito forte. 

“Nesse conjunto, ele retrata as crianças filhas dos operários. Ao escolher como matéria-prima o produto que os pais trabalham, ele faz um questionamento sobre as relações trabalhistas e familiares”, conta a arte-educadora Maria Auxiliadora Borges, mestre em história da arte pela Universidade do Porto, em Portugal.

O britânico Carl Warner, que se expressa por meio da fotografia, é o criador da exposição Paisagem de alimentos, no qual constrói paisagens bucólicas usando ingredientes como chocolate, frutas e cereais. 

Em exposição no Centro Cultural Banco do Brasil em Brasília até amanhã, a obra Mother’s Pride, de Antony Gormley, é outro exemplo de quando a comida deixa de ser apenas o tema para se tornar o veículo de uma mensagem artística. Na obra, pães de forma mordidos, remetendo aos cafés da manhã preparados pelas mães, são dispostos para formar a silhueta de um homem.

Segundo Maria Auxiliadora, esse movimento é fruto de uma ressignificação da arte. “Na contemporaneidade, questiona-se o lugar da arte e a relação dela com o espectador. O alimento tem diversos significados, único para cada um, por isso essa junção é tão frequente”, explica a especialista brasileira. “Um mesmo alimento pode despertar gula ou nojo. Pode remeter a momentos bons e ruins. Buscar a memória afetiva de cada um é um viés recorrente da arte explorado por artistas que utilizam comida em suas obras”, completa.




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