Igreja Anglicana: Do começo ao fim – Por Michelle Veronese
A Igreja Anglicana está prestes a
se dividir. E esse destino foi traçado no momento de sua fundação: quando o rei
Henrique Oitavo decidiu romper com a Igreja Católica para se divorciar da esposa e
se casar com a amante.
Desde então, ela segue um passo à frente da maioria das
igrejas cristãs, há 60 anos tem mulheres entre seus sacerdotes, há 10 admite
gays no clero e recentemente celebrou um casamento entre homossexuais. Por ser
tão moderna, arrebanhou milhões de fiéis pelos cinco continentes. Por ser tão
moderna, está se desintegrando. O seu maior trunfo se transformou em seu maior
conflito, num dilema que questiona os limites de uma religião baseada na fé em
Cristo e no evangelho. A história, do início ao fim, você lê aqui.
Capítulo 1: O início
Inglaterra, 1533. O rei Henrique Oitavo era casado havia 24 anos com Catarina de Aragão. Com ela, teve seis filhos,
mas só um deles, uma menina, sobreviveu. Preocupado com o futuro do trono,
Henrique deixou-se encantar por Ana Bolena, uma dama educada, culta, jovem e
louca para subir na vida. O rei pediu o divórcio. O papa Clemente Sete negou. E
ainda se recusou a abençoar a sua segunda união. Henrique Oitavo não pensou duas
vezes: cortou relações com Roma e se declarou o chefe de uma nova Igreja, a
Igreja Anglicana.
Essa é a parte da história que
você conhece. Uma versão muito simplista, diriam os anglicanos. Segundo eles, o
desejo de separação já estava presente bem antes desse episódio. Desde o século
dois, para ser mais exato. Naquele tempo, ainda não havia a religião católica.
Existia apenas o cristianismo. Onde os apóstolos paravam, construíam uma
igreja, que ganhava o nome do povo local. Na Grã-Bretanha, virou Igreja Celta:
uma adaptação do cristianismo aos costumes, crenças e tradições da região.
No século seis, já a mando da
Igreja Católica, santo Agostinho se estabeleceu na cidade inglesa de Cantuária,
com o objetivo de converter os anglo-saxões. Virou o arcebispo de Cantuária e
colocou a Inglaterra sob a tutela do Vaticano.
Foi assim por quase 1 000 anos,
até que o rei, particularmente afetado pelas regras do catolicismo, decidiu
proclamar a independência. Nascia a igreja mais liberal do século 16.
Capítulo 2: A conquista de fiéis
Em tempos de conquista de
territórios, angariar fiéis não era das tarefas mais difíceis: a metrópole
simplesmente impunha sua religião à colônia.
Mas a Igreja Anglicana fez
diferente. Deixou que os povos colonizados contribuíssem com seus próprios
valores e ideias. A adaptação era peça fundadora e fundamental da sua
estrutura.
Os anglicanos acreditam na
Santíssima Trindade e seguem, como todos os cristãos, as Sagradas Escrituras.
Entre o catolicismo e o protestantismo, escolheram o caminho do meio. Dos
católicos, pegaram a sua hierarquia de padres, bispos e arcebispos. Mas, como
os protestantes, eles não aceitam a autoridade do papa. A figura que mais se
aproxima disso é o arcebispo de Cantuária, nome herdado de santo Agostinho,
que passa recomendações e mantém a unidade da Igreja no mundo. Mas não impõe
nenhuma decisão.
Cada província (o grupo de cada
país) é livre para questionar as recomendações do líder, que só entram em vigor
após serem discutidas entre representantes do clero e dos leigos. Tudo por
respeito à filosofia anglicana, que pressupõe a crença inabalável na maturidade
dos fiéis. À Igreja cabe apenas a função de orientar os membros por meio do
conhecimento do evangelho.
E assim, democraticamente, cada
província construiu uma personalidade, que se reflete até no nome. Não existe
uma única Igreja Anglicana: há a Igreja da Inglaterra, a Igreja da Irlanda, a
Igreja Episcopal dos EUA, a Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, e por aí vai.
Todas elas reunidas na chamada Comunhão Anglicana, presente em 160 países de
todos os continentes do globo. Ao todo, são 80 milhões de fiéis, o suficiente
para fazer dos anglicanos a terceira maior comunidade cristã do mundo.
Capítulo 3: A adaptação aos
tempos
Em 1944, a Igreja de Hong Kong
passava por uma situação singular: não havia homens dispostos a assumir cargos
de sacerdócio. Os bispos da província decidiram, então, ordenar uma mulher.
Florence Li Tim Oi foi mandada para a colônia de Macau e entrou para a história
como a primeira sacerdotisa de uma religião cristã.
Na Igreja Anglicana, as decisões,
em geral, aparecem antes dos conflitos: com Florence Li Tim Oi, a discussão de
gênero veio à tona. A questão só foi debatida oficialmente em 1968. E precisou
de outros 10 anos para que a ordenação feminina fosse recomendada. Não parece
uma questão tão complexa. Mas é. Os religiosos mais conservadores entendem que,
uma vez que Jesus nomeou 12 apóstolos, todos homens, sacerdotes mulheres vão
contra a ordem natural da Igreja. Os liberais discordam, argumentando que essa
leitura restrita do evangelho pode dar margem a discriminações. E é a maioria.
Hoje, grande parte das províncias aceita mulheres na hierarquia da Igreja.
“Os anglicanos enfrentam os
desafios da sociedade moderna com muita propriedade. Em vez de expurgar uma
facção dissidente, eles tentam conviver com a diversidade”, diz o sociólogo
Edin Sued Abmansur, professor de teologia da PUC de São Paulo. Não é por acaso
que boa parte dos novos fiéis venha de outras denominações cristãs, em geral,
são ex-católicos e ex-evangélicos, em busca de aceitação e acolhimento.
Na Inglaterra, por exemplo, a
comunidade gay representa cerca de 50% do total. Natural que, com o tempo,
alguns deles quisessem participar do clero. Em novembro de 2003, foi ordenado o
primeiro bispo assumidamente homossexual da Igreja Anglicana. Gene Robinson,
separado e pai de dois filhos, desbancou três concorrentes e foi o escolhido
para ocupar o cargo na paróquia de New Hampshire, nos EUA.
As Igrejas da África e Ásia e
algumas paróquias americanas pediram a expulsão da Igreja Episcopal dos EUA. Em
assembleia, o pedido foi negado e outros sacerdotes gays começaram a ser
ordenados ao redor do mundo. A democracia que agregava, abria
cada vez mais espaço para divergências: a divisão entre liberais e
conservadores ficava cada vez mais clara.
Capítulo 4: A gota d’água
Junho, 2008. A capela londrina de
São Bartolomeu estava enfeitada para mais um casamento. O noivo, Peter,
esperava ansioso a entrada de seu futuro esposo, David. A decisão do reverendo
Martin Dudley, de celebrar com toda a pompa e liturgia anglicana a união entre
dois homens, desobedecia a ordem de seu superior, o bispo Richard Chartres. Mas
Dudley comprou a briga. “Fiz o que acho certo”, disse.
Peter e David, ambos os pastores,
trocaram alianças e voltaram para casa sob uma chuva de confetes, sabendo que
aquele seria um marco para os anglicanos. Um golpe talvez forte demais para a
ala conservadora, que havia muito tempo vinha engolindo em seco as decisões de
modernização da Igreja.
“A prática da homossexualidade é
um pecado que fere as Escrituras”, diz o bispo Robinson Cavalcanti, da diocese
do Recife. Robinson faz coro com outras dioceses conservadoras que têm se
mobilizado contra a ordenação e o casamento de homossexuais. Uma contradição,
segundo o reverendo Richard Haggis, padre anglicano que já pertenceu à diocese
de Londres.
“Se Chartres fosse coerente com sua decisão de proibir o casamento
entre homossexuais, teria que expulsar todos os padres gays de sua diocese. E,
se essa caça às bruxas fosse bem-feita, deixaria cerca de 40% das vagas para serem
preenchidas no próximo ano”, provoca. Dudley poderá ser punido. Ou não. Tudo
depende do que for decidido nos próximos dias.
Os conservadores já têm uma
posição bem clara. No mês passado, 300 de seus bispos se juntaram em uma assembleia
independente realizada em Jerusalém e, num manifesto público, afirmaram que não
reconhecem como membros da mesma comunidade religiosa a Igreja Episcopal dos
EUA e a Igreja Anglicana do Canadá, duas das províncias mais liberais. Também
disseram que não almejam o rompimento com a Comunidade Anglicana, mas rejeitam
a autoridade do arcebispo de Cantuária assim como a ordenação de mulheres e de
homossexuais ou o casamento entre pessoas do mesmo sexo. O recado foi dado: depois de cinco
séculos, um novo caminho está surgindo para o anglicanismo.
Capítulo 5: O fim
Enquanto você folheia estas
páginas, o futuro da religião anglicana está sendo discutida na Conferência de
Lambeth, uma reunião realizada a cada 10 anos com os representantes da comunhão
para debater os rumos da Igreja no mundo.
No Palácio de Lambeth, residência
do arcebispo de Cantuária, o clima é tenso: 200 dos 800 convocados se recusaram
a comparecer, em solidariedade ao bloco conservador. Mas tudo indica que a
Igreja não vai recuar. “Não temos como ir contra a história e voltar atrás em
nossas conquistas”, adianta Luiz Alberto Barbosa, presidente da Câmara dos
Clérigos e Leigos da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, que reúne
representantes de todas as dioceses brasileiras. “Temos um problema e não vamos
escondê-lo. Vamos discuti-lo.”
Essa discussão esbarra nos
princípios do anglicanismo, segundo os quais cada um deve, à luz de sua fé e
confiança em Deus, decidir o próprio caminho, por meio da liberdade individual,
da autonomia e do discernimento. Ironicamente, essa visão, que motivou a
formação da Igreja e que sempre a diferenciou das tradicionais seguidoras de
Jesus Cristo, é também a causa do seu enfraquecimento.
Se os bispos liberais não
estiverem mesmo dispostos a abrir mão de suas conquistas e os conservadores se
mantiverem irredutíveis em suas decisões, estarão caminhando em direção ao
cisma. Aos conservadores, ficariam duas opções: formar uma nova Igreja ou
voltar às origens, juntando-se à Igreja Católica. E aos 80 milhões de
seguidores da Comunhão Anglicana caberia decidir de que lado ficar. Decisões
que envolvem riscos. “O desafio da modernidade se impõe a todas as Igrejas. A
que tentar se adaptar aos novos tempos sempre terá um preço a pagar”, diz o
sociólogo Edin Abmansur.
Ao gosto do fiel
Os anglicanos são livres para
escolher que tipo de liturgia seguir. Dependendo da opção, as Igrejas são
classificadas como low church, high church e broad church:
Low church (baixa igreja)
A liturgia é austera e centrada
na pregação, bem ao estilo protestante. O sacerdote pode ser chamado de pastor
e costuma usar uma simples estola sobre a batina alva.
High church (alta igreja)
Lembra as missas católicas, com
incenso, velas, cruzes e cânticos. O sacerdote é conhecido como padre e o
destaque da celebração é a sagrada eucaristia.
Broad church (igreja ampla)
Meio-termo entre a high church e
a low church. É o padrão mais comum nas paróquias do Brasil.
Católicos x Anglicanos x
Protestantes
As diferenças e semelhanças entre
as três maiores comunidades cristãs do mundo:
CATÓLICOS
Acreditam na Santíssima trindade?
- Sim.
Seguem a Bíblia? - Sim.
Acreditam em santos? - Sim e
cultuam imagens.
Realizam batismo, crisma e
matrimônio? - Sim. E ainda eucaristia, ordem, penitência e unção dos enfermos.
Obedecem ao papa? - Sim.
Exigem celibato dos sacerdotes? -
Sim.
Aceitam mulheres no clero? - Não.
Mulheres não têm permissão de realizar liturgias ou sacramentos.
Aceitam o divórcio? - Não.
Aceitam a homossexualidade? -
Não.
ANGLICANOS
Acreditam na Santíssima trindade?
- Sim.
Seguem a Bíblia? - Sim. Também leem
o Livro de Oração Comum, com preces e orientações sobre a liturgia.
Acreditam em santos? - Sim, mas
não cultuam imagens.
Realizam batismo, crisma e
matrimônio? - Sim. Todos os sete sacramentos católicos foram incorporados pelos
anglicanos.
Obedecem ao papa? - Não. O seu
líder é o arcebispo de Cantuária, Mas ele só orienta, não impõe suas decisões.
Exigem celibato dos sacerdotes? -
Não.
Aceitam mulheres no clero? - Sim.
A primeira foi ordenada em 1944 e a decisão passou a ser recomendada em 1978.
Aceitam o divórcio? - Sim. E
abençoam uma segunda união, a menos que a causa do divórcio tenha sido o
adultério.
Aceitam a homossexualidade? -
Sim. Gays são bem-vindos na comunidade e também no clero. Já realizaram,
inclusive, um casamento entre gays.
PROTESTANTES
Acreditam na Santíssima trindade?
- Sim.
Seguem a Bíblia? - Sim. Mas a
Bíblia protestante tem sete livros a menos que a Bíblia católica.
Acreditam em santos? - Não. E
também não cultuam imagens.
Realizam batismo, crisma e
matrimônio? - Sim. Mas, para eles, os sacramentos são sinais de algo sagrado –
não conferem a graça divina.
Obedecem ao papa? - Não. Não há
um único líder: as organizações são chefiadas por bispos.
Exigem celibato dos sacerdotes? -
Não.
Aceitam mulheres no clero? -
Alguns, como luteranos e batistas, aceitam mulheres em todas as hierarquias.
Aceitam o divórcio? - Nem todos.
Os luteranos aceitam. Os batistas aceitam, mas não recomendam.
Aceitam a homossexualidade? -
Sim. Algumas Igrejas permitem que eles sigam o sacerdócio. Outras os acolhem,
mas não permitem sua ordenação.
Para saber mais
Church at War – Anglicans and Homosexuality
Stephen Bates, St Martins Press, 2004.
Igreja Episcopal Anglicana do
Brasil
www.ieab.org.br
Fonte: http://super.abril.com.br
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