Entrevista com o Ir. Marcelo Barros – Por Marcos Nunes
Entrevista com Marcelo Barros,
monge beneditino, biblista e assessor de comunidades eclesiais de base e
movimentos populares. Atualmente, é coordenador latino-americano da Associação
Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo (ASETT).
1 - Vemos hoje que há muitas
pessoas trocando de religião, assim como também, há pessoas deixando a religião
e partindo para outros caminhos, como o ateísmo. Isso significa que religião
está em crise?
Resposta: Acredito que esse
fenômeno do trânsito religioso (o fato das pessoas passarem uma Igreja a outra
ou de uma religião a outra) e o fenômeno da secularização (isso é, o aumento do
número de pessoas que se dizem sem religião) é decorrência de um mundo mais
diversificado, com mais liberdade de escolhas e contatos entre as diferentes
culturas. Os meios de comunicação e a facilidade de relação entre pessoas e
grupos de diferentes tradições religiosas fazem com que o mundo seja mais
pluralista. Penso que isso é positivo. Não é motivo de crise para nenhuma
religião ou Igreja. Acredito que a religião, ou melhor, as religiões estão em
crise, sim, mas é por motivos internos. Hoje, o desafio para as religiões é
saberem se situar adequadamente nesse mundo pluralista, aprender a dialogar com
a humanidade de hoje e testemunhar que a mensagem que trazem é pertinente,
justa e diz algo de importante para as pessoas da geração contemporânea.
2. Bento XVI chegou a afirmar que
a IGREJA está em crise. Era a isso que ele se remetia?
Não posso responder por ele, mas
não creio que ele tenha querido dizer isso. Até porque ele parece preferir uma
Igreja minoritária e pouco inserida na humanidade que seja fiel à doutrina e
aos princípios de sempre. Quando ele diz que a Igreja está em crise (está se
referindo à Igreja Católica e não a toda Igreja cristã), creio que tem em vista
a crise interna da estrutura romana. Nas alocuções e homilias feitas depois da
sua declaração de renúncia, aludiu à divisão na cúpula do Vaticano, à luta pelo
poder entre cardeais e aos sofrimentos que teve por parte de pessoas que lhe
eram próximas. Sem dúvida, os escândalos com relação à pedofilia de clérigos e
à desonestidade econômica e ilegalidades no Banco do Vaticano (IOR) o fizeram
sofrer e são elementos dessa crise que ele aponta.
3. Há uma preocupação, por parte
da Igreja, com a constante perda de fieis? Se a igreja não se preocupa em
ganhar novos fieis, não deveria se atentar para garantir a permanência dos
existentes?
Tomar como objetivo da Igreja
ganhar novos fiéis é confundir missão com proselitismo, ou seja, a política de
conquistar pessoas. É transformar a Igreja em uma empresa que faz propaganda de
si mesma e de seus produtos. Algumas Igrejas cristãs e alguns setores católicos
caem nessa tentação. Jesus mandou seus discípulos testemunharem e anunciarem o
projeto divino no mundo (que o evangelho chama de reino de Deus). Propaganda da
própria Igreja é outra coisa. É claro que a Igreja tem um compromisso de servir
a seus fiéis. Se uma pessoa quer deixar a Igreja Católica por motivo de
consciência, é seu direito e a Igreja não deve fazer nada para impedir. Agora
se alguém deixa a Igreja porque não encontra mais nela aquilo que precisa para
viver sua fé, aí a Igreja tem de se rever e se perguntar se ainda tem alguma
razão de ser.
4. Em pronunciamento, Bento XVI
pediu a renovação da Igreja e disse: "Temos que trabalhar verdadeiramente
para que se realize o segundo Concílio do Vaticano e que se renove a Igreja”.
As diretrizes do Concílio, que foi aprovado na década de 1960, atendem ao
crescente apelo por renovação da Igreja?
Nos anos 60, o Concílio foi uma
verdadeira primavera para a Igreja, um tempo de renovação (João XXIII o
definiu: um novo Pentecostes, isso é, começo novo para a Igreja sob a
inspiração do Espirito). É claro que um acontecimento que foi renovador há 50
anos, agora precisa ser reinterpretado para a realidade de agora. Comumente, no
mundo, uma organização, cultural e social, pensaria que princípios emanados há
50 anos já estariam superados. De lá para cá o mundo mudou tanto que são
necessário critérios novos e novas diretrizes. Com a Igreja Católica, contudo,
o que ocorreu é que sob a influência muito centralizadora dos dois últimos
papas, o que existe de mais novo hoje ainda é a proposta de renovação emanada
do Concílio Vaticano II. Depois do Concílio e dos anos de sua aplicação, nada
se fez de mais renovador ou que buscasse uma atualização da missão, do modo de
expressar a fé e da organização da Igreja. Por isso, de fato, a única
referência que temos que pode responder ao apelo de renovação da Igreja é o
Concílio Vaticano II e na América Latina, a conferência do episcopado
latino-americano em Medellin (1968). Se conseguirmos que a Igreja, hoje, retome
esse espírito, já será uma maravilha.
5. O papa João Paulo II classificou
o Concílio como "um momento de reflexão global da Igreja sobre si mesma e
sobre as suas relações com o mundo”. Essas relações são, ainda hoje, levadas em
consideração?
O Concílio significou um tempo de
grande diálogo da hierarquia da Igreja Católica com a humanidade do seu tempo.
No Concilio, o papa e os bispos deixaram de ver os tempos modernos como algo
negativo e perigoso para a fé. Nas últimas décadas, esse diálogo foi rompido e
a modernidade de novo passou a ser vista como simplesmente negativa. (É bom a
gente ser críticos, mas não pessimistas e movidos pelo medo). É preciso retomar
o diálogo como princípio espiritual e elemento fundamental da missão da Igreja.
6. Ao pedir essa renovação, Bento
XVI disse que isso implicará em um combate espiritual, "porque o espírito
do mal quer nos desviar do caminho de Deus”. Essa afirmação remete a alguma
contenda política na Igreja?
Só ele pode afirmar exatamente o
que quis dizer com isso. De fato, a espiritualidade é sempre um constante
combate interior, cada pessoa consigo mesma. Essa luta pela conversão pessoal e
comunitária transforma a Igreja em suas estruturas para que ela não se torne
uma empresa qualquer. Conforme o rabino Nilton Bonder, na tradição judaica, o
termo hebraico Satã (no grego diabolos) significa não uma pessoa ou entidade
externa a nós, mas um bloqueio na conexão entre a pessoa e o Espírito. O
demônio seria uma energia que cria obstáculo no caminho da saúde e da
integração interior(1)[1]. Jon Sobriño, teólogo salvadorenho, escreveu: "O
conteúdo concreto da tentação que Jesus enfrentou foi o uso do poder que Jesus
poderia ter para exercer sua missão. Ele o rejeitou”(2)[2].
7. Mas, então, isso significa que
existe mesmo algum conflito interno e político na cúpula da Igreja?
Embora assistida pelo Espírito
Divino, a Igreja é feita de homens e sua hierarquia é humana. Alguém acha
estranho que em uma instituição do tamanho da Igreja e com sua importância hoje
no mundo haja tendências diferentes, grupos opostos e no próprio Vaticano em um
momento como esse isso apareça? Penso que imaginar o contrário seria querer uma
Igreja de anjos e seres celestiais e não de pessoas humanas concretas. Acho
normal que haja esses conflitos. O que não é normal seria usar métodos
antiéticos para desqualificar o outro lado e vencer de qualquer modo.
8. Concretamente, como seria
isso?
A Bíblia nos diz para não tomar o
nome de Deus em vão. Acho uma vergonha todo mundo saber que no Vaticano, grupos
se digladiam pelo poder e quando são perguntados, todos respondem: É o Espírito
Santo que decidirá. Isso é chamar as pessoas de idiotas. Creio e espero que o
Espírito Santo inspire e guie as pessoas que votarão, mas não creio em ato
mágico e nem de incorporação espírita na hora da votação. As pessoas são
humanas e em consciência votarão como pensam, mesmo se invocarem o Espírito
para poderem discernir o que é melhor para a Igreja. Desejo muito que o
resultado reflita a vontade de Deus, mas isso não é mecânico e automático. Na
história houve papas que fizeram muitas coisas boas e bonitas, mas houve também
papas que agiram muito mal e será que esses foram escolhidos também pelo
Espirito Santo? Ou foi um erro dos cardeais? Com a eleição papal, ocorre como
nós cremos que ocorre com a própria palavra da Bíblia: é inspirada por Deus,
mas nem por isso deixa de ser humana, o que significa, é cultural, é social e
política e condicionada ao momento presente e a todas as circunstâncias da
história. É isso que o evangelho diz quando proclama que o Verbo, isso é a
Palavra Divina se fez carne (João 1, 14).
9. O que o senhor acha da
Teologia da Libertação?
Se Jesus é salvador e disse que o
Espírito Santo o ungiu para anunciar aos empobrecidos a libertação (Lucas 4, 16
ss), então, toda a fé cristã e toda teologia deveria ser libertadora. Não se
trata de uma teologia sobre a libertação. Isso não é tão importante. O
importante é que a teologia seja qual for colabore para que a humanidade tenha
mais vida, mais saúde e mais alegria. Jesus disse: Eu vim para que todos tenham
vida e vida em plenitude (João 10, 10). Então a teologia deve visar à
libertação. Em 1968, os bispos católicos da América Latina, reunidos em
Medellín definiram: A Igreja precisa ser pobre e missionária, comprometida com
a libertação de toda humanidade e de cada pessoa humana em sua integralidade
(libertação moral, libertação espiritual, libertação cultural, libertação
social, econômica, etc). (Cf. Medellín, documento sobre Juventude 5, 15). Não
vejo em que isso ficou superado. Nem o mundo melhorou tanto depois de 68 que
isso se tornou desnecessário (ao contrário, a pobreza se agravou) e nem o
evangelho perdeu sua atualidade. A teologia da libertação, hoje, deve assumir
novas tarefas e nova linguagem, mas é sempre necessária e atual.
10. Analistas pontuam que o
cardeal Ratzinger investiu contra a Teologia da Libertação, na América Latina,
assim como contra os teólogos jesuítas na Europa, o feminismo e a
homossexualidade. A rigidez dele e de João Paulo 2º os levou a tentar sufocar
as discussões sobre os padres casados e o celibato, a ordenação de mulheres, a
contracepção e o aborto. Essas questões devem ser discutidas de forma mais
aberta pela Igreja?
Em 1962, ao abrir o Concílio
Vaticano II, o papa João XXIII afirmou que a Igreja manteria sua fé de sempre,
mas se empenharia em expressá-la de uma outra maneira. Ele explicou que se pode
afirmar a fé de modo que divida as pessoas e provoque sofrimento e se pode
afirmar a mesma fé de modo que una. A fé é a mesma, mas a sua expressão pode
variar e isso vale para a doutrina, inclusive disciplinar e moral. No
Evangelho, Jesus nunca se negou a dialogar com as pessoas e soube adaptar-se à
realidade delas, Rezo para que toda a hierarquia da Igreja Católica aprenda a
fazer isso. Quem quer que seja, padre, bispo ou papa, tem o direito de pensar
como quiser; mas, como ministro de Jesus, é chamado a dialogar e abrir-se a uma
atitude acolhedora e amorosa com todas as pessoas que o procuram ou pedem a sua
palavra.
11. Com dois antecessores
poliglotas e que se relacionaram de forma assídua com o mundo, o que deve ser
levado em consideração na escolha do próximo papa? Esse fator relacional irá
pesar na escolha? Ele deverá ser um bom relações-públicas?
Pessoalmente, como crente e como
teólogo, desejo e oro para que os cardeais que se reunirão proximamente em
conclave percebam que em um mundo como o nosso não tem nenhum sentido manter o
ministério do papa como uma monarquia absoluta medieval de direito divino e com
jurisdição no mundo todo. E ainda dizer que isso vem do tempo dos apóstolos e é
vontade de Deus. Se a Igreja aceitasse voltar ao estilo do primeiro milênio do
Cristianismo, o papa deveria ser escolhido com o critério de ser bispo de Roma,
patriarca da Igreja latina, ponte (pontífice) da unidade de todas as Igrejas,
mas a partir do respeito à autonomia das Igrejas locais que não são filiais de
uma organização internacional e sim verdadeiras Igrejas, com todos os elementos
da Igreja universal. Para resumir, nada de papa brasileiro ou africano. Papa
deve ser italiano, de preferência romano que seja verdadeira e plenamente bispo
de Roma e coordene a comunhão das Igrejas locais de forma sinodal e colegial,
como quis o Concílio Vaticano II.
12. Qual o caminho a ser seguido
pela Igreja nos próximos anos?
Como já afirmei, voltar ao
espírito do Concilio Vaticano II e revalorizar as Igrejas locais como
verdadeiras Igrejas e não apenas como sucursais do Vaticano. Nesse mundo
autoritário e excludente em que vivemos; dar o exemplo de dialogar; e
estabelecer uma agenda de discussões com a humanidade que toque nas grandes
questões sociais, humanas, éticas e culturais. Penso que é importante
intensificar a aproximação com as outras Igrejas e religiões e com elas realizar
um fórum de todas as tradições espirituais pela paz, justiça e defesa da
natureza criada por Deus. E aí sim a Igreja saberá enfrentar as questões
internas da igualdade entre homem e mulher nos ministérios e superar normas
disciplinares que valeram para outras épocas, mas hoje não são sinais da
realização do projeto divino no mundo.
[Marcelo Barros é monge
beneditino, biblista e assessor de comunidades eclesiais de base e movimentos
populares. Atualmente, é coordenador latino-americano da Associação Ecumênica
de Teólogos/as do Terceiro Mundo (ASETT). Tem 44 livros publicados].
[1] - NILTON BONDER, A Cabala da
Comida, do Dinheiro e da Inveja, Rio de Janeiro, Imago, 1999, p. 36 e 41.
[2] - JON SOBRIÑO, Cristologia a
partir da América Latina, Petrópolis, Ed. Vozes, 1983, p. 117.
Fonte: http://www.adital.com.br
Comentários