Pesquisa investiga tráfico interno de escravos no Brasil - Por José Tadeu Arantes
Encerrado oficialmente há apenas
125 anos, o sistema escravista, componente fundamental da formação da sociedade
brasileira, ainda influencia, de diferentes maneiras, o país no presente.
Embora exista uma vasta historiografia da escravidão, os novos estudos são
sempre oportunos, ainda mais quando, recorrendo exaustivamente às fontes
primárias, investigam em profundidade aspectos que só haviam sido tratados por
obras de caráter mais geral.
Tal é o caso de Escravos daqui,
dali e de mais além: o tráfico interno de cativos na expansão cafeeira paulista,
tese de livre-docência de José Flavio Motta, professor associado da Faculdade
de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo
(FEA-USP), publicada na forma de livro com o apoio da FAPESP.
Nesse trabalho, o autor, um
veterano no estudo da escravidão, que já havia publicado, em 1999, o livro: Corpos escravos, vontades livres, igualmente com o apoio da FAPESP, pesquisa
as características do comércio de escravos no período de 1861 a 1887, que
cobre, quase inteiramente, as três últimas décadas do sistema escravista e do
regime monárquico no Brasil.
“Trata-se, como é sabido, de um período
de grande expansão da lavoura cafeeira na Província de São Paulo. E os
municípios escolhidos para análise, Areias e Guaratinguetá, no Vale do Paraíba,
e Constituição (Piracicaba) e Casa Branca, no ‘Oeste Histórico’, foram
atingidos pelo avanço do café no território paulista, desde a virada do século
dezoito para o dezenove”, disse.
A principal base documental do
estudo foram escrituras de transações envolvendo escravos (compra e venda,
permuta, doação etc.), preservadas nos arquivos desses municípios. No total,
Motta analisou 1.656 escrituras, correspondentes a 3.677 cativos. Outra fonte
utilizada foi o Almanak da Província de São Paulo para 1873.
Além disso, o pesquisador
percorreu a vasta coleção de fontes impressas primárias e secundárias sobre o
tema, desde o relato A Peregrinação pela Província de São Paulo (1860-1861), de
Augusto Emílio Zaluar, até o estudo historiográfico O escravismo colonial, de
Jacob Gorender (1985), dois livros considerados clássicos.
“Analiso nessa tese as características
das transações, dos escravistas que as realizavam e, sobretudo, das pessoas que
eram negociadas”, afirmou Motta. Com o fim do tráfico transatlântico
intensificou-se no Brasil o comércio interno de escravos, inter e
intraprovincial.
A expansão da cafeicultura
paulista fez com que os municípios analisados se tornassem importantes polos de
atração, com as entradas de cativos prevalecendo sobre a saída, embora esta não
deixasse de ocorrer. O mesmo fenômeno foi observado em outras áreas produtoras.
“A proposta foi desenvolver um
estudo comparativo, ao mesmo tempo sincrônico, entre os distintos municípios
que vivenciavam estágios diferenciados do desenvolvimento das lavouras
cafeeiras e diacrônico entre os distintos intervalos de tempo: 1861-1869, 1870-1873,
1874-1880 e 1881-1887. Nesses intervalos houve variações na própria dinâmica de
tráfico interna, devido em parte ao avanço na chamada questão servil, com a
promulgação da Lei do Ventre Livre, em 1871, e da Lei dos Sexagenários, em
1885”, explicou Motta.
Variação nos preços
Grosso modo, nas áreas mais
recentes e dinâmicas (em especial no “Oeste Novo” paulista), localizadas na
fronteira da expansão da cafeicultura, a grande demanda por mão de obra fez
afluir, em maior número, escravos provenientes das províncias do “Norte” do
país.
E, no contingente de escravos
comercializados, destacam-se os adultos jovens do sexo masculino. Seu preço,
mais alto no mercado escravista, era compensado pela maior produtividade no
trabalho.
Já nas áreas mais antigas (Vale
do Paraíba), os escravos negociados eram comparativamente mais velhos e
provenientes, em maior proporção e dependendo do subperíodo considerado, de
províncias limítrofes (Rio de Janeiro e Minas Gerais), tendo, por isso, menor
preço no mercado escravista.
Motta, no entanto, ressalva que a
preferência pelos adultos jovens do sexo masculino como uma característica
bastante geral do comércio interno estudado não é uma novidade para a
historiografia.
“O diferencial deste estudo está
em acompanhar como, e sugerir interpretações do porquê, essa preferência se
torna mais ou menos intensa, naqueles diferentes municípios, no decurso dos
distintos intervalos temporais”, disse.
A profusão de dados
quantitativos, em uma tese que é fundamentalmente um trabalho de história
econômica, não reduziu os escravos à condição de meros números, desprovidos de
subjetividade e de protagonismo.
“Em algumas situações, se percebe
com nitidez o esforço dos escravos para moldar seus destinos ou ao menos influir
neles, nos limites do possível”, ressaltou o pesquisador.
Marcas profundas
Um caso exemplar, tanto do
empenho do escravo em conquistar sua liberdade como dos comportamentos da elite
escravista, é o de Rosaura, cozinheira então com 25 anos.
Autorizada pela proprietária a
pedir esmolas como atividade adicional, para comprar sua liberdade por um conto
e quinhentos mil réis, Rosaura conseguiu em sete meses juntar um montante de 30
mil réis, entregues à sua senhora mediante recibo.
Quando Rosaura foi vendida a
outro senhor, pelo valor de 1 conto e 500 mil réis, os 30 mil réis de seu
pecúlio, conforme descrito na correspondente escritura, foram repassados pela
antiga proprietária para o novo.
Transcorridos apenas dois meses,
esse a revendeu por 1 conto e 750 mil réis, obtendo grande lucro na transação.
Mas, diferentemente da escritura de venda anterior, a nova não fez nenhuma
referência às economias da escrava, talvez simplesmente apropriadas pelo seu
segundo senhor.
Serviço:
Escravos daqui, dali e de mais
além
Autor: José Flavio Motta
Lançamento: 2012
Páginas: 387
Mais informações:
www.alamedaeditorial.com.br/escravos-daqui-dali
Fonte: http://agencia.fapesp.br
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