religião, projetos e processo criativo - Por Luiza Maia
Na ansiedade para o
lançamento do próximo livro, Tangolomango, em março, mas sem data definida, o
escritor pernambucano Raimundo Carrero, natural de Salgueiro, não consegue se
dedicar a nenhum dos vários projetos. No notebook que usa para escrever, estão
as primeiras frases de três livros.
A ambiciosa biografia sobre
Jesus Cristo, previamente intitulada: Jesus – O Deus perseguido, tem
aproximadamente 10 páginas e tem tomado seu tempo com leituras sobre o tema. A
autobiografia Às vésperas do Sol, inspirada no acidente vascular cerebral que
sofreu em 2010, o mais avançado, mas estancada. O terceiro é Lamalagata, obra
que dá sequência às obras intricadas, com personagens em comum, que desenvolve
desde Maçã agreste (1989).
Carrero voltou a andar
normalmente há cerca de dois meses. Na sala da casa onde mora, no Rosarinho, o
vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura, com A minha alma é irmã de Deus
(2009), recebeu o Diario para uma conversa sobre Tangolomango, os outros
projetos, carreira e religião.
A protagonista de
Tangolomango é a misteriosa Tia Guilhermina, que tinha o sonho de ser
prostituta e ama o sobrinho Matheus, ao mesmo tempo a grande paixão e a maior
vergonha de sua vida. Os dois surgiram em Maçã agreste e tiveram destaque em O
amor não tem bons sentimentos (2007), em cujo desfecho Matheus estupra e mata a
irmã, Biba, e a mãe, Dolores.
Entrevista // Raimundo
Carrero
TANGOLOMANGO
Por que um livro para Tia
Guilhermina?
Porque, na verdade, eu sou
muito apaixonado por ela. É uma personagem muito apaixonante, carismática, na
verdade. E eu achei que podia trabalhar bem com ela, lutei por ela. Acho que
escrevi um romance razoável.
Está muito rápido, não é?
Bem introspectivo…
O livro acontece no
carnaval, e o carnaval pede essa rapidez. Eu escrevi como se fosse um frevo de
bloco, com os movimentos da música. O ritmo interior dela, que é muito
cadenciado, também pedia um ritmo mais acelerado. Eu fiz o que pude fazer,
escrevendo com um dedo só.
E agora, está escrevendo
com as duas mãos?
Essa mão (a esquerda) está
do mesmo jeito. Mas a outra está boa. Na verdade, eu escrevi um conjunto de
romances, que englobam sete romances, desde Maçã agreste. Então eu precisava
fazer uma relação entre os personagens, porque eu precisava investigar o máximo
possível a família e o mundo interior deles. Eles vão falando e se manifestando
na primeira pessoa. Parece brincadeira, mas eu precisava conhecer mais o
interior deles. Por exemplo, Tia Guilhermina é muito recatada. Ela se envolve
com homens, mas ela é muito recatada. Ela se condena e se culpa pela relação
com o menino. Relação não, que nunca chegou a acontecer, pela paixão pelo
menino. Nunca se concretizou porque ela não deixa. Ela diz “o sangue não trai”.
Não se envolve sexualmente coma criança, fica só o desejo e a paixão. Ela não
vai, como se diz popularmente, às vias de fato.
Você acha que isso é por
causa de alguma crença sua?
Possivelmente, pode ser
minha. Mas, do ponto de vista técnico, eu também quis associar a imagem a
pessoas que não praticavam. O sonho dele de ser prostituta não se realiza
porque ela tem medo da solidão da prostituta. Ela diz que tem medo de homem,
mas ela tem medo da solidão da prostituição.
Ela não é solitária? Eu
achei uma personagem solitária…
Solitária, ela é, porque
ela vive só com os sonhos e as agonias dela. Mas depois ela começa a se soltar
mais. Quando ela começa a sentir a paixão pelo menino, ela tem a relação de
amizade com o filho adotivo, que é ela quem cria. Ela procura soltar essa
solidão no piano, na música, que é o elemento exterior dela. Ela se solta e vai
revelando a sua agonia interior. Ela fala como se não se conhecesse. Quando as
pessoas falam “quem é Tia Guilhermina?”. Ela não responde nunca, como se fosse
uma narrativa indireta.
E o livro não fala muito
bem como ela é fisicamente…
É uma pessoa pequenininha e
chochinha, bem magrinha.
Por que é tão sedutora?
Porque ela é ansiosa, muito
ansiosa. Essas pessoas que se jogam no mundo, não esperam que o mundo venha.
Agora muito slitária. Você vê que a boemia dela é solitária. Ela vai muito aos
bares, mas vai sozinha. E chora. E espera uma pessoa que não vai aparecer. Ela
não marca encontro com ninguém. A pessoa que ela mais queria conhecer é ela
mesma. Mesmo quando está com Matheus, ela está só. O que Matheus faz para matar
a solidão é ler. Agora Matheus é matreiro, porque ele reconhece a paixão dela e
faz de conta que não, embora seduza a tia. Dá um toque erótico na voz quando
lê. Ela diz isso, ciúme das palavras. A voz dele tem algo de sensual, erótico.
É o menino que seduz, não é o contrário. Ele procura aprofundar e abismar a
paixão dela.
Você lembra como criou Tia
Guilhermina?
Quando eu senti que ela ia
aparecer, eu me baseei muito em mulheres solitárias que conheci. Muitas
velhinhas solitárias. Aqui no recife é muito comum isso, no interior nem tanto.
A família vai crescendo e vai deixando a mãe, avó, tia muito só. Ela começa a
viver a vidinha dela sozinha. Essas mulheres foram meu modelo. Na verdade tem
um modelo físico, mas não divulgue aí. (põe a mão em cima do gravador)
O livro se passa quando?
A ação anterior é na década
de 1960, 1970.
E o carnaval?
Agora. Já é o Galo da Madrugada.
Quando eu cheguei no Recife, existia uma coisa chamada Manhã de Sol, que era
muito bonita, com orquestra, escola de samba, a partir da manhã até 16h, 17h. E
eu achava aquilo muito bom. Aí levei Tia Guilhermina para procurar a Manhã de
Sol. Mas não encontrou e encontrou o Galo da Madrugada. Aquele strip tease dela
foi uma surpresa. Eu não esperava que ela fizesse aquele strip tease não. Ela
não queria fazer strip tease não. Ela queria trocar de roupa. Só que ela,
irresponsavelmente, tirou a roupa no meio da rua. Quando ela prestou atenção,
estava todo mundo olhando para ela, e aplaudindo. Como a curra também foi uma
surpresa. Ela vai indo para casa. Quando chega na Torre, ela encontra uns
rapazes em um jipe. Para mim, eu só queria mesmo um passeio. No caminho, eles
param o carro, vão comer em um restaurante popular um cozido. Ela come também
aquele cozido cheiroso, cheio de comidas e gorduras. Aí ela sente vontade de ir
ao banheiro. Quando ela está lá, os rapazes invadem o banheiro e a estupram e curram.
Aí ela sai dali morrendo de febre, dor de cabeça, mal-estar. E começa a ver a
família, encontra um grupo de circo. Como estão todos cheios de estopa, ela
começa a reconhecer a família dela todinha. Ela vai para casa, e os fantasmas
ficam em casa.
É um amor impossível
contemporâneo?
Digamos que sim. Não tem
como solucionar. Perfeitamente impossível, até porque ela não quer realizar. Em
um dado momento, ele já era um rapaz, um homem feito. É aquela história das
mulheres modernas que acham que têm que dar banho nos meninos nuas. Só que elas
esquecem que as crianças têm um alto grau de erotização. E ele passa a ter
desejo por ela, só que ele não fala. Só quem fala é ela, que passa a comandar
toda a história.
Quando ele seduz Tia
Guilhermina, ele quer mesmo ou é só um jogo?
Quer. Ele quer. Ele tem
plena consciência de tudo. Tem uma cena do banho que ele começou a se abraçar
com ela no banho. Ela aceitou, mas depois mandou ele sair, ir para a bacia
dele. Naquela hora, ele sente que também tem paixão por ela. Mas, por algum
motivo, não realiza nada. Eu poderia terminar o romance, seria muito curioso,
com o estupro dela por ele, como eu terminei O amor não tem bons sentimentos.
Mas seria excessivo. Passa a perder a credibilidade. O romancista tem que ter
noção da sua dose perfeita, para não ficar ridículo.
E ele ia virar um
personagem…
Sem graça, assassino.
A gente ia passar a
detestá-lo.
Ele é estuprador da mãe e
da irmã, mas ele passa uma imagem simpática, que faz aquilo porque foi
erotizado pela tia. Como ele viveu próximo da mãe e da irmã, era resultado da
paixão que ele tinha pelas duas. Eu pensei em encontrar um romance de Dolores
(mãe de Matheus), mas era muito difícil, porque ela não fala nem pensa. A
meninazinha pergunta: “mãe, você não fala”. Aí ela: “não falo nem penso”. Posso
até fazer, mas vai ser muito difícil. Um romance só de imagens e metáforas.
Dolores era seca, ao contrário de Tia Guilhermina. Pode ser que depois eu faça.
Meu projeto imediato, você sabe disso, é a biografia de Cristo. Já comecei a
rascunhar. E depois uma novela sobre uma personagem chamada Paloma, amiga de
Camila, de A minha alma é irmã de Deus. É uma menina bem malvada. O nome da
novela é Lamalagata, uma palavra que eu inventei. Significa a gata má.
Lamalagata – O caminho da águia no ar. O romance de Cristo está me dando muito
trabalho, porque eu precisei de muitas informações seguras, por exemplo, sobre
a infância dele. Como foi a infância dele? Como foi a formação dele? Se bem que
ele não precisava de formação. Quem precisa é a gente, porque ele é Deus. Dizem
que tem um livro desse Papa que está saindo, chamado A infância de Cristo. Eu
quero ler, porque é muito curioso.
A linguagem desse livro
está muito leve. As vírgulas, os adjetivos vêm em uma sequência que parece
obrigatória…
Eu escrevo como quem
compõe. Tem a melodia e o ritmo. O ritmo é um só, os andamentos são diferentes.
Quem conhece andamento sabe que andamento… O romance tem que ser mais triste,
mais alegre, mais angustiado, mais triste, alegre alegre. Qualquer pessoa que
conhece partitura de música vai ver. A frase tem que ser naquela hora. Tanto
que circula a primeira e a terceira pessoa.
Às vezes, não sentimos onde
começa e termina a citação. É tudo muito sequenciado.
A técnica não é monólogo. É
uma falta de terceira pessoa. Narra na terceira, mas na verdade é a primeira.
Às vezes, Tia Guilhermina salta e fala. É uma coisa trabalhosa, mas eu
consegui. É algo que persegui há muito tempo.
RELIGIÃO
Eu acho uma loucura esse
projeto.
Eu acho não. Acho uma
maravilha. Não é uma biografia no sentido jornalístico. Histórico é. Começa com
Nossa Senhora cantando no deserto, indo para Belém, cantado Magnificat. E aí
várias ações ocorrem. A lembrança dela do anjo, quando anunciou a ela. A visita
de Isabel e ainda a simbologia de pisar uma cobra. O romance vai chamar Jesus –
O Deus perseguido.
Quem vai narrar?
O narrador na terceira
pessoa. Começa com Nossa Senhora contando a maravilha que ela sentia e
lembrando os fatos e pisando na cobra e andando para Belém, onde Jesus nasceu.
O que você achou da
renúncia do Papa?
Para mim, é um aviso à
humanidade, uma espécie de recado de Deus. Não é uma renúncia qualquer, é um
recado de Deus. O mundo está precisando de luz. Ele está pedindo a gente que renuncie
à vulgaridade, esse é o significado da renúncia. Pelo pecado que mais a gente
tem, do amor ao corpo pelo corpo, sem nenhuma transcendência. Mesmo essas
igrejas que proclamam o nome de Cristo o tempo todo têm uma vaidade muito
grande.
E sobre a polêmica em torno
da renúncia?
Acho normal. É tão raro,
teria que provocar mesmo um debate muito forte. Vejo como um recado. “Se meu
filho, que é meu representante na Terra, por renunciar, por que vocês não
podem?” Do ponto de vista religioso, esse momento é muito grave. Claro que a
Igreja tem seus problemas. A Igreja é santa e pecadora ao mesmo tempo, porque
nós somos filhos do pecado de Adão e Eva, mas também de Maria também. Somos
santos com ela. É o momento em que o homem deve ser mais humilde, se aproximar
mais de Jesus Cristo e renunciar ao mundo, no sentido da depravação pecaminosa,
do amor ao dinheiro, excesso de amor ao corpo, como se não existisse nada que
não o corpo. E o resto?
Você acha que o Papa
renunciou por quê?
Como cardeal, ele conhecia
todos os problemas da Igreja. Mas como Papa, esse conhecimento passou a ser
outro. Ele preferiu voltar a viver como cardeal. Ser Papa é muito difícil,
porque significa colocar o mundo nos ombros, literalmente, não é
metaforicamente não. E o Papa significa martírio. Ali, ele tem que ser
extremamente sincero. E aquilo pesou muito. Deus disse a ele “tudo bem, já que
está muito pesado para você, você renuncia e vem a mim na qualidade de
religioso. Vamos dar esse exemplo ao mundo, que Deus avisa ao homem que é preciso
renunciar, largar o mundo como ele está, muito violento, erótico, corrupto, que
é mais grave, e feio. É hora de refletir, analisar e transcender. Deus está
pedindo uma renúncia ao mundano.
Você já escreveu muito?
Nem 10 páginas, porque é
muito trabalhoso. Não é só contar uma história. E eu estava escrevendo esse.
Terminei em setembro. O que me alegrou foi que, no mesmo dia em que mandei,
aprovaram o livro. E ela (a editora) usou uma frase que me impressionou muito:
“fiquei muito impactada”. As pessoas que estão lendo têm dado uma resposta
muito forte, muito bonita.
ÁS VÉSPERAS DO SOL
E a sua autobiografia?
Estou escrevendo, mas minha
psicóloga diz que a dificuldade vem do medo de mim mesmo. Eu andei muito pouco.
Tem umas 50 páginas escritas, mas tem que lembrar dores, angústias. Esse
romance (Tangolomango) me tomou muito. Fiquei quase exclusivamente com ele o
dia todo. Eu acordava planejado para escrever À véspera do Sol, mas a saudade
de Tia Guilhermina, que agora é muito grande… Você convive com a pessoa dias e
anos, e de repente a pessoa parte, sem chance de retorno. Eu tinha paixão e
afeto por Tia Guilhermina, muito carinho por ela. Tomou conta dos meus sonhos e
da minha pele. No meu primeiro romance, Bernarda Soledade foi muito forte para
mim. Mas foi um fenômeno muito diferente. Eu escrevi em cinco dias. Eu estava
na fazenda com minha ex-sogra, e escrevia 20 páginas por dia. Foi uma paixão
fulminante. Sinto saudades muito remotas, mas Tia Guilhermina é mais carnaval,
está na minha pele, toca em mim. Quando eu saí do hospital, em novembro de
2010, eu comecei a trabalhar esse livro. No começo, eu ditava para a terapeuta,
Elaine. Até que eu decidi eu decidi não ditar mais, quis escrever, mesmo com um
dedo só. Deu trabalho, às vezes eu me confundia, mentalmente me confundia.
Ditar não é escrever. Escrever é um ato físico, sensual até.
RECUPERAÇÃO
Você ainda faz terapia
ocupacional?
Faço, mas segunda e sábado
só. Eu estou andando bem, me mexo bem. Só muita dor na coluna e nas costas.
Vamos dar uma voltinha? (e se levanta para caminhar no corredor)
Carrero, e o centro
cultural (projeto que vai desenvolver em uma casa no Rosarinho, perto da casa
onde mora)?
Vai ficar pronto no segundo
semestre, mas depende de patrocínio. Espero fazer a parte interna ainda agora,
eu tenho um dinheirinho no banco, vou fazer. Derrubar as paredes e fazer as
salas, para a oficina de literatura e cinema.
Tem algum romance surgindo?
Esse dois tu achas pouco?
Não, mas queria saber. Não
custa perguntar, você não é de biografias…
Tem Lamalagata. Já tem a
abertura. Vou mostrar a você.
Você não tem medo de ser
criticado?
Não. É a visão do autor,
não da Igreja. Vou seguir ao máximo a visão da Igreja. Mas, inevitavelmente,
alguém vai criticar. É até natural. “Carrero fez tudo errado”. No livro, tem um
erro proposital, diz que o Galo da Madrugada é no domingo. Mas eu precisava dos
cachorros de domingo.
Você escreve ainda nessa
poltrona?
É. Computador é muito bom.
Você passa o dia todo no
Facebook, né? O que você acha do site, hein?
O dia todo. É um negócio
ótimo. A gente pode conversar com um grande número de pessoas, conversar com
gente que nem conhece, admiradores, pessoas que gostam da gente, da obra da
gente. Mas tem invasões horríveis também.
Já aconteceu alguma invasão
dessas?
Já. Gente que vem falar de
sexo, “quer f… comigo?” Aquela palavrinha… “Não sei quem é você, como posso
querer”. “Mas queira, queira que a gente faz”. “Eu não, quero não”. Aí mandam
fotos de mulher nua, que a gente vê que são fotos de revista. Outra pessoa veio
criticar o livro, sem ler. “Você quer fazer sucesso sem lançar livro”. O livro
tem quatro etapas. A primeira é o planejamento, depois escrita, depois
divulgação e promoção. Quarta, vendas. Estou na fase de divulgação e promoção.
Você se acha vaidoso?
Sou, razoável. Não existe
artista que não é vaidoso. Agora não pode deixar tomar conta. Tem gente que
toda vez que escreve um livro acha que mudou a superfície da face da Terra, ou
que é mais importante porque ganhou um prêmio.
Você tem escrito?
Não, com a ansiedade do
lançamento, não sai nada.
Como está o dia a dia?
Fisioterapia, hidroterapia,
Cepe três vezes na semana, dou aula na terça, quarta e quinta, na Academia
Pernambucana de Letras, na livraria CUltura Nordestina e na UBE e vou a médico
e exame que só a peste. Segunda-feira, tive uma crise de coluna dessas que
arrebentam de dor e passei o dia inteiro, no soro e tomando antibiótico.
LITERATURA
Mas está produzindo muito,
né?
Eu escrevo muito. Sempre
escrevi muito. Para ter uma ideia, em 1986, eu escrevi três romances e
publiquei três. O senhor dos sonhos, Sombra severa e Além da baleia.
Qual o intervalo bom entre
um livro e outro?
Dois anos. No primeiro ano,
você recupera as energias. Eu escrevo primeiro as cenas que acho mais fortes.
Escrevo uma, duas, três e depois junto, como em um jogo de armar mesmo.
Geralmente você começa pela
abertura, né?
Que tem que ser
naturalmente muito forte. Não é muito forte, embora eu ache forte, a velhinha
andando na cidade. É como quem vai em busca do destino. O primeiro bairro no
Recife que eu conheci foi São José. E era um bairro lindo, embora fosse
austero, com casas distantes. Mas era a alma do Recife. Outro dia eu passei lá,
achei horrível. Aí escrevi aquela abertura.
SAUDADES
Qual a última vez que você
brincou carnaval?
Há muitos anos. Eu só
brincava carnaval quando era do Diario de Pernambuco. Eu era chefe de redação,
aí descia quando todos os repórteres iam embora, ia para a Guararapes, Rua
Nova, até a década de 1980.
Tem saudade?
Eu tenho vontade de ver. Eu
sou muito triste, gosto muito da solidão… “Felinto, Pedro Salgado, Guilherme
Fenelon”, “Adeus, adeus, minha gente”. Isso é tristeza, não é não? Aí Capiba
canta “De chapéu de sol aberto pelas ruas eu vou, a multidão me acompanha, eu
vou”. Aí depois ele fala de solidão, tristeza. O Recife é triste. As pessoas
não gostam de dizer, mas o Recife é triste. O carnaval do Recife é tristíssimo.
Você já escreveu ouvido
música?
Não, porque a música me
desvia. Como eu sou músico (Carrero toca saxofone e integrou várias bandas), a
música me desconcentra, eu me vejo tocando saxofone. Eu acho que eu devia ter
continuado. Eu não fui fiel a mim mesmo. Mas eu toquei muito, demais.
Você preferiria tocar a
escrever?
Preferia escrever, mas
tendo o saxofone como companheiro. Eu estava pensando em voltar, comprar um sax
novo, mas com essa mão assim não posso tocar.
Você já pensou em parar de
escrever?
A única coisa no mundo que
eu não faria por ninguém. Só tem duas pessoas que me fariam parar: meus filhos.
Como eles não vão pedir isso, porque eles sabem que é minha vida. Eu pararia,
mas com grande sofrimento. Minha vida perderia o sentido. Tenho mulher, filhos,
família, gosto muito de todos, mas não viveria sem escrever. Quando eu saí do
hospital, vim para casa doido para escrever. Achei que ia ser mais fácil, mas
não foi. A médica disse que eu perdi 20% da minha capacidade cognitiva. Mas
escrevi o romance.
Você teve medo?
Tive, quando estava no
hospital. Eu me esforçava o tempo todo para pensar em um romance. Pensei muito
em Tia Guilhermina. Cheguei em casa já procurando o computador, mas não
consegui escrever nada. Aí depois consegui criar a história e a terapeuta
digitava.
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