Feliciano, religião e Estado secular - Por Fábio Lacerda e Sergio Simoni Jr.


Algumas das reações contrárias à nomeação do deputado Marco Feliciano (PSC-SP) para a presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) dão a entender que a laïcité do Estado brasileiro está em perigo.

É preciso, então, perguntar-se sobre qual a real razão das manifestações, e se estamos testemunhando uma ameaça ao Estado laico.

A escolha de Feliciano não ganhou destaque apenas pelo fato de ele ser um pastor. Desde 2011, o deputado ficou famoso por ter feito declarações polêmicas e ofensivas, algumas delas objeto de investigação judicial. 

No entanto, elas não parecem ser a causa real da indignação, e sim suas posições em questões morais. Um exercício contrafactual tornaria claro que qualquer outro deputado religioso que se posicionasse reiteradamente contra o casamento homossexual e o aborto e assumisse a CDHM seria hostilizado. Tais posições não são vistas apenas como preconceito, senão também como afronta ao Estado secular.

Mas há nesse episódio alguma ameaça real ao Estado laico ou secular? A resposta a esta pergunta depende do que se entende por esses adjetivos. A compreensão de “secularismo” ou “laicidade” implícita nas manifestações contrárias a Feliciano parece ser a de um credo político arreligioso que não tolera que tradições religiosas participem da esfera pública.

Essa compreensão supõe que doutrinas não religiosas seriam capazes de resolver questões político-morais de modo a convencer qualquer pessoa honesta, e que doutrinas religiosas só poderiam convencer quem já aceitou o dogma religioso. 

Isso é claro nas manifestações dos grupos contrários a Feliciano. Para eles, as posições contrárias ao casamento homossexual e ao aborto estariam fundamentadas apenas em verdades reveladas, sendo ilegítimas no debate político. Todavia, a Igreja Católica e muitas igrejas cristãs não precisam basear suas posições na revelação. A defesa da vida e do casamento feita por elas se fundamenta na razão.

A defesa da exclusão das doutrinas religiosas do debate público é, pois, feita com argumentos equivocados. Poderíamos ir além e afirmar que doutrinas religiosas estão tão ou mais preparadas para a defesa dos direitos humanos que as não religiosas. 

Dado o caráter secularizado e pluralista da política moderna, a justificação política dos direitos humanos é uma necessidade. Porém, o pluralismo necessita de fundações que não são elas mesmas pluralistas ou meramente políticas, e que se baseiam em firmes recursos morais. Esses recursos estão profundamente relacionados com convicções religiosas.

Para o filósofo Charles Taylor, o secularismo não diz respeito à relação entre Estado e religião, e sim à resposta correta do Estado democrático à diversidade. Nesse sentido, o secularismo envolve a busca por dois objetivos: liberdade para exercer e escolher qualquer tipo de religião ou nenhuma delas; e respeito às diferentes tradições religiosas e não religiosas no debate público. 

O episódio da eleição de Feliciano expõe a concepção restrita de Estado secular de parte da opinião pública brasileira. Talvez esteja na hora de lutarmos por uma concepção mais razoável de Estado secular, uma que entenda secularização como respeito às diferenças, e não como a simples exclusão das tradições religiosas do debate público brasileiro.

Fábio Lacerda e Sergio Simoni Jr. são mestres e doutorandos em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP).





 

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