Frans de Waal — a entrevista - Por R. Lopes
Para alguém que tem se
especializado em demonstrar que o ser humano e os demais primatas têm um lado
pacífico e bondoso por natureza, Frans de Waal conseguiu comprar briga com
muita gente diferente ao publicar seu novo livro.
Autor de “The Bonobo and the Atheist” (“O Bonobo e o Ateu”), que
acaba de sair nos Estados Unidos, o primatólogo holandês-americano
provavelmente não agradará muitos religiosos ao argumentar que ninguém precisa
de Deus para ser bom.
Seu modelo de virtude? O bonobo (Pan paniscus), um primo-irmão dos chimpanzés
comuns (e do homem) que é conhecido pela alta capacidade de empatia com membros
de sua espécie e de outras, pela sociedade relativamente tolerante (não há
registro de “guerras” entre bonobos, ao contrário do que ocorre entre
chimpanzés) e pelo uso generoso do sexo como forma de resolver conflitos e
cimentar alianças.
Com base nos estudos com grandes macacos, e também com outros
mamíferos sociais, como elefantes e cetáceos, Waal afirma que a moralidade não
surgiu por meio de argumentos racionais sobre o que é certo ou errado, nem
graças a leis ditadas por Deus, mas deriva do kit básico de emoções que nós
compartilhamos com essas espécies.
Bonobos e chimpanzés sabem que é seu dever cuidar de um amigo
doente ou mesmo inválido, retribuir um favor ou pedir desculpas por uma
mancada, entre outras coisas.
A “parábola do bom símio”, nesse sentido, é tão
útil quanto a do bom samaritano, afirma ele. Por outro lado, o livro também é uma crítica aos chamados Novos
Ateus, um grupo de cientistas e filósofos, capitaneados pelo zoólogo britânico
Richard Dawkins, que tem dado novo impulso ao conflito entre ateísmo e religião
desde a última década.
“Eu não consigo entender por que um ateu deveria agir de modo
messiânico como eles”, diz Waal, um ex-católico que também não crê em Deus. “O
inimigo não deveria ser a religião, mas sim o dogmatismo, seja ele científico,
filosófico ou religioso.”
O primatólogo afirma que, na trajetória evolutiva do
homem, a religião surgiu depois do senso moral inato e, no máximo, ajudou a
reforçá-lo em certos contextos. Mesmo assim, argumenta, é algo que faz parte da
natureza humana, e uma cruzada contra ela poderia fazer com que coisas piores
tomassem seu lugar, como ocorreu nos regimes comunistas.
De quebra, o cientista resolveu bancar o crítico de arte ao usar
como guia a obra de um conterrâneo: o pintor Hieronymus Bosch (1450-1516),
nascido na cidade de Den Bosch, assim como Waal, e famoso pelas pinturas
repletas de criaturas fantásticas e assustadoras.
A maioria dos historiadores da arte atribui o estilo de Bosch a
crenças heréticas ou a uma visão cristã ferrenhamente tradicional sobre o céu e
o inferno. Mas o primatólogo vê os principais quadros do artista como críticas
à religião organizada e exaltações da ética e dos prazeres mundanos, ele seria
um humanista secular, como os bonobos.
Confira abaixo a íntegra da entrevista que Frans de Waal deu por
telefone à Folha.
Folha – Quem o sr. acha que está mais bravo com o sr. depois da
publicação do livro: os Novos Ateus, fortemente criticados na obra, ou os
historiadores da arte, já que o sr. resolveu fazer uma interpretação pouco
ortodoxa da obra de Hieronymus Bosch?
Bem, no caso dos historiadores da arte, eu realmente não sei,
nenhum entrou em contato comigo até agora (risos). No caso dos ateus, recebi muitas mensagens de gente que me
apoia. É claro que, em certo sentido, eu estou do lado deles, tanto por também
ser ateu como por acreditar que a fonte da moralidade não é a religião. O que
eu digo no livro, essencialmente, é que os Novos Ateus estavam gritando alto
demais e que precisam se acalmar um pouco, porque a estratégia deles não é a
melhor.
Só por curiosidade, Richard Dawkins, que é o pop star dos Novos
Ateus, chegou a falar com o sr. sobre o livro?
Na verdade não, e não tenho certeza se ele se importa muito a
esta altura do campeonato. Realmente acho que o movimento deles é uma onda que
passou, eles estão passando a se preocupar com outras coisas no momento.
Em seu livro, o sr. faz uma referência interessante ao romance
“O Senhor das Moscas”, de William Golding, história na qual garotos perdidos
numa ilha deserta acabam reinventando vários aspectos da sociedade, inclusive a
religião. Só que a religião que eles criam é brutal, incluindo até sacrifícios
humanos. O sr. acha que foi assim no caso da evolução da religião? Ela nasceu
brutal e foi ficando mais “domesticada” e humanizada?
Acho que não. Não saberia dizer quantas religiões ao longo da
história tiveram sacrifícios humanos. Mas, quando olhamos para as sociedades
tradicionais de pequena escala, estudadas por antropólogos, as quais
provavelmente foram a regra antes do surgimento da agricultura [ou seja, em
mais de 90% da história da espécie humana], vemos que esse tipo de coisa não
está presente entre elas.
É claro que eles tinham crenças sobre o mundo sobrenatural, todas as sociedades humanas as têm, e podiam sacrificar um ou outro animal
aos deuses ou aos espíritos, mas no geral eram religiões relativamente
benignas.
É só quando as sociedades aumentam de escala que elas começam a
se tornar mais agressivas e dogmáticas, e a exigir coisas como o sacrifício
humano, o que ocorria com os astecas, por exemplo. Acho que o cenário em “O
Senhor das Moscas” tem muito mais a ver com o ambiente traumático dos colégios
internos tradicionais britânicos, acho que é isso que Golding reflete na
narrativa dele.
Quando se enfatiza o lado pacífico e ético das sociedades de
primatas não humanos e do próprio homem, não há um perigo de fechar os olhos
para a faceta violenta da natureza primata?
Concordo que, nos meus livros mais recentes, essa ênfase existe.
Por outro lado, meu primeiro livro, “Chimpanzee Politics” [“Política
Chimpanzé”, sem tradução no Brasil], era totalmente focado na violência, na
manipulação maquiavélica e em outros aspectos pouco agradáveis da sociedade
primata. Mas a questão é que, na literatura especializada e na voltada para o
grande público, criou-se uma ênfase exagerada nesses aspectos negativos, e as
pessoas não estavam ouvindo o outro lado da história. É como se tudo o que os
seres humanos e os primatas fizessem fosse competir, e isso não é verdade no
nosso caso e não é verdade no caso dos grandes macacos.
O sr. acha que encontrar um chimpanzé ou bonobo cara a cara pela
primeira vez pode funcionar como uma experiência religiosa ou espiritual,
porque reforça a ideia de um elo entre os seres humanos e os demais seres
vivos?
Eu não chamaria de experiência religiosa (risos), mas é uma
experiência muito profunda, que muda a sua percepção da vida. No livro, conto
como a chegada dos primeiros grandes macacos vivos à Europa no final do século
19 despertou reações muito fortes nas pessoas, em vários casos deixando o público
muito nervoso e inquieto porque havia essa ideia confortável da separação entre
seres humanos e animais. Por outro lado, gente como Darwin viu aquela
experiência como algo positivo, algo maravilhoso.
E o sr. sente que essa aversão aos grandes macacos diminuiu
hoje, mesmo quando as pessoas são religiosas?
Sim, e isso é muito interessante. Eu costumo dar palestras em
reuniões de sociedades zoológicas de grandes cidades aqui nos Estados Unidos, e
essas reuniões costumam receber uma parcela representativa da população como um
todo, nem de longe apenas cientistas.
Tenho certeza de que muitas pessoas ali são muito religiosas,
como é de se esperar no caso do público americano. E esse público é fascinado
pelos paralelos e pelas semelhanças entre seres humanos e grandes macacos ou
outros animais. Isso não necessariamente significa que essas pessoas queiram
saber mais sobre a teoria da evolução, mas elas acolhem a conexão entre pessoas
e animais e querem ouvir mais a respeito dela.
Na sua nova obra, o sr. defende várias vezes a ideia de que não
se pode simplesmente eliminar a religião da vida humana sem colocar outra coisa
no lugar dela. Que outra coisa seria essa? Ou é perigoso pensar nesses termos
de “engenharia social”?
É preciso reconhecer que os seres humanos têm forte tendência a
acreditar em entidades sobrenaturais e a seguir líderes. E o que nós vimos em
revoluções políticas ao longo da história, em especial no caso do comunismo, no
qual houve um esforço para eliminar a religião, é que essa tendência acaba sendo
preenchida por outro tipo de fé, que se torna tão dogmática quanto a fé
religiosa.
Então, o temor que eu tenho, e é algo que outras pessoas também
mencionaram, como [o filósofo americano] Dan Dennett, é que, se a religião for
eliminada, ela seja substituída por algo muito pior. Eu acho preferível que as
religiões sejam adaptadas à sociedade moderna.
Outro argumento importante do livro é que o menos importante nas
religiões é a base factual delas, coisas como se Jesus é mesmo Deus encarnado,
por exemplo. O mais relevante seria o papel social e emocional das reuniões e
dos rituais. Para quem é religioso e se importa com a verdade do que acredita,
não é uma visão que pode soar como condescendente ou desonesta?
Imagino que sim. É que, desde os tempos de Émile Durkheim
[sociólogo francês morto em 1917], sempre houve um grande foco no papel social
da religião. Apesar do debate sobre o porquê do surgimento da religião, poderia ser a necessidade de pensar na vida após a morte, ou uma série de
outras coisas, um fator indiscutível é a capacidade da crença religiosa de
unir pessoas em torno de algo.
Pode ser que, para quem é religioso, essa visão trivialize suas
crenças. Mas, como biólogo, quando vejo alguma coisa que parece existir em
quase todos os grupos de uma espécie, como é o caso da religião, a minha
pergunta é: para que serve? Que benefício as pessoas obtêm com isso? Ou seja, a
pergunta que faço é funcional. Não tenho a intenção de insultar as pessoas com
esse enfoque.
FICHA DO LIVRO
“The Bonobo and the Atheist: In Search of Humanism Among the
Primates” (“O Bonobo e o Ateu: Em Busca do Humanismo entre os Primatas”)
Editora W.W. Norton & Company
313 páginas - (livro eletrônico)
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