Hitler era incapaz de afetos verdadeiros, mas cultivava seu carisma, diz historiador – Por Jacinto Antón



Acreditamos saber praticamente tudo sobre Adolf Hitler, mas restam segredos irredutíveis de sua personalidade e sua liderança. 

Para o célebre historiador e documentarista britânico Laurence Rees, nenhum se compara a como ele conseguiu arrastar atrás de si milhões de alemães, na terrível espiral da guerra e do genocídio. 

Para tentar elucidar isso e explicar o mistério da fatal atração do líder nazista, o autor de "Auschwitz", "O Holocausto Asiático""Uma Guerra de Extermínio" "A Portas Fechadas", dedicou seu novo livro, "O Obscuro Carisma de Hitler" (pela editora espanhola Crítica, como todos os outros).

Rees destaca nos traços de Hitler sua "ilimitada capacidade de ódio". E adverte: "O poder do ódio está subvalorizado. É mais fácil unir as pessoas em torno do ódio do que em torno de qualquer crença positiva".

Como pessoa, salienta Rees, Hitler era realmente lamentável. Um sujeito psiquicamente "muito prejudicado", incapaz de amizades e afetos verdadeiros, banhado em ódio e preconceitos. "Solitário e com uma visão da vida como luta e dos seres humanos como animais". Mas tinha carisma. "Costumamos crer que o carisma é um valor positivo, mas pessoas desprezíveis podem possuí-lo", reflete Rees. 

"O mais importante que se deve entender do carisma de Hitler é que dependia das pessoas. O carisma não existe sem conexão. Não se pode ser carismático em uma ilha deserta. Boa parte é dada pelo outro." Mais ou menos como o amor. 

"Sim, a ideia é que quando sentimos uma conexão especial com alguém acreditamos que depende dessa pessoa, mas na realidade depende em parte de nós. O carisma de Hitler procedia tanto das pessoas que o seguiam quanto dele próprio. Por isso agora não o percebemos em fotografias ou filmes. Não fala conosco. Não somos de seu tempo. O que mudou não é ele, mas a percepção que temos dele."

Rees explica como entre os próprios alemães foi mudando a influência do carisma de Hitler. Pessoas que o viam como um personagem ridículo ou perturbado em 1928 passaram a considerá-lo um salvador em 1933.

"Sempre houve, entretanto, gente imune a seu carisma. Philipp von Boeselager, que se conjurou para matá-lo, o considerava indigno e dizia que era repugnante vê-lo comer: um grosseiro. Bem, mas é preciso lembrar que para muitos alemães os políticos educados eram os que os haviam levado ao Tratado de Versalhes e ao desastre: tempos inconvencionais exigiam líderes inconvencionais."

"Era preciso estar predisposto para seguir Hitler, embora ele, o líder, usasse sua intransigência, sua absoluta segurança de seu papel como figura providencial, sua capacidade para conectar-se com as esperança e os desejos de milhões de alemães, sua descontrolada emotividade e, sobretudo, seu ódio contagioso. Uma das coisas mais difíceis do mundo é assumir as culpas e responsabilidades próprias, todos estamos predispostos a projetar nossas frustrações sobre o outro, em forma de ódio."

O carisma de Hitler dependia do êxito? 

"Sim, esse aspecto foi vital. Se alguém diz que vai fazer algo extraordinário e o faz, na próxima vez é mais fácil acreditar nele. Hitler jogava forte, tudo ou nada, e cada vitória fortalecia seu carisma. Muitos militares, por exemplo, que o viam com suspeita, se renderam a seu gênio, a sua intuição, o famoso 'Fingerspitzengefühl', depois da longa série de vitórias que pareciam inexplicáveis. Embora hoje, em retrospectiva, não o vejamos assim e Montgomery tenha dito que a regra número 1 da guerra era não invadir a Rússia, para a maioria parecia muito mais incrível vencer a França do que a União Soviética."

Então, como seu carisma sobreviveu às derrotas a partir de Stalingrado? 

"Ao contrário de Mussolini, Hitler desmantelou as estruturas do Estado, por isso era mais difícil tirá-lo do poder. Além disso, havia-se inculcado nos alemães o medo de Exército Vermelho e sua vingança, que se produziria com a derrota mesmo que se desfizessem de Hitler, e é claro que Hitler incrementou o terror de seu aparelho repressivo em proporção direta à perda de sua liderança carismática."

Hitler cultivava seu carisma? 

"Absolutamente, inclusive de muitas maneiras pequenas. Usava óculos mas nunca se deixava ver e retratar com eles. Carregava uma lupa. Até fabricaram uma máquina de escrever especial com caracteres muito grandes para escrever os textos que ele devia ler, a Führeschreibmaschine. Também estudava muito sua imagem no espelho e praticava seu famoso olhar penetrante."

Rees salienta as diferenças entre Hitler e Stalin em termos de carisma. "Stalin praticava o carisma negativo, toda a imagem de Hitler lhe parecia uma loucura. Com Stalin não havia regras para evitar ser assassinado. Ninguém estava seguro. Na Alemanha nazista estava claro quem seria perseguido pelo regime, na União Soviética stalinista não. Stalin unia com o medo, Hitler com o ódio."

Rees é um homem afável, acostumado a tratar com as pessoas. Ri e brinca com frequência, mas por baixo dessa camada alegre e aparentemente descontraída se percebe a profundidade de um homem que há anos, toda a sua carreira, enfrenta o pior do ser humano. 

Para seus livros e famosos documentários da BBC, entrevistou inúmeras pessoas que viveram a Segunda Guerra Mundial, soldados e civis, vítimas e carrascos. Quando lhe pergunto qual de todos esses depoimentos da barbárie mais o impressionou, pensando que me dirá algum membro do Einsatzgruppen ou Kenichiro Oonuki, o piloto camicaze fracassado, fica sério por um bom momento antes de responder: 

"Tolvi Blatt, um judeu polonês deportado em 1940 para o campo de extermínio de Sobibor, onde toda a sua família foi assassinada. Blatt participou da revolta de prisioneiros em 1943 e conseguiu escapar com um tiro na mandíbula. Falávamos sobre o que os seres humanos são capazes de fazer, e lhe perguntei o que havia aprendido com sua experiência. Respondeu-me: " Só uma coisa: ninguém se conhece de verdade."







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