Religião e direitos humanos – Por José Reinaldo de Lima Lopes e Oscar Vilhena Vieira *
Os direitos humanos têm origem
remota no discurso religioso, particularmente no cristianismo.
A afirmação da
fraternidade universal dos seres humanos, devida a serem todos filhos de um só
Pai, e da liberdade também universal representada pelo resgate realizado pelo
Salvador são uma raiz não negligenciável do longo processo em que nos
inserimos.
Contudo o desenvolvimento das liberdades modernas representou também
uma ruptura com o passado religioso. As religiões organizadas resistiram quanto
puderam ao novo ideal de autonomia dos sujeitos humanos e nos últimos 200 anos,
pelo menos, opuseram-se sistematicamente, na teoria e na prática, ao avanço
quer da liberdade, quer da igualdade.
No Brasil essa tensão foi subestimada porque nos anos de chumbo da ditadura
certos líderes religiosos católicos, protestantes e judeus enfrentaram o
arbítrio do regime militar. Se os nomes de dom Paulo, do rabino Sobel e do
pastor Wright são imediatamente associados à defesa dos direitos humanos, isso
não se generaliza: basta analisarmos a ambiguidade (para não dizer omissão ou
conivência) da atitude de outros líderes religiosos e igrejas na América
durante a última onda de autoritarismo.
Essa tensão se deve ao próprio caráter das religiões e, particularmente, de
suas instituições, ou seja, das religiões organizadas. Elas pretendem ser
abrangentes, potencialmente fundamentalistas ou integristas e proselitistas.
Abrangentes e potencialmente integristas porque desejam incorporar todas as
dimensões da vida moral de seus adeptos, de modo que se estes pertencerem a
outras comunidades, não religiosas, como a comunidade política nacional, por
exemplo, seus deveres para com sua religião e seus correligionários devem
preceder seus deveres para com seus semelhantes que professam outro credo ou
não professam credo algum, embora pertençam à mesma sociedade política.
Fundamentalistas ou integristas porque almejam oferecer uma linha da qual seus
adeptos não podem escapar e determinam todas as dimensões de sua vida.
Proselitistas porque vivem da incorporação de novos adeptos, e não de uma
sobrevivência vegetativa.
Aqui reside parte do perigo para a sociedade política. Para fazer prosélitos
não temem semear divisões entre os cidadãos, e não divisões quaisquer: semeiam
divisões de identidade, transferindo para a República distinções que,
acreditam, serão afinal feitas pelo próprio Deus. Como pretendem ter com seu
Deus um canal privilegiado de comunicação, se não ser mesmo suas representantes
na Terra, antecipam no foro das instituições estatais e na legislação a
separação que, supõem, a divindade fará no momento que julgar apropriado. Isso,
note-se, mesmo diante de explícitas palavras, ou as palavras mesmas (ipsissima
verba), de Jesus ("não julgueis...").
A concepção de uma sociedade
fundada em identidade não religiosa ou racial passou a ser inerente à própria
ideia de direitos humanos. Ela tem por base a noção de que cada ser humano é
moralmente livre: pode escolher seus ideais e sua forma de vida sem dar
satisfações a autoridades ou vizinhos, desde que tal escolha não cause dano a
outrem, ou, como dizia Thomas Jefferson em defesa da liberdade religiosa em sua
Virgínia natal, "desde que não quebre minha perna nem furte minha carteira".
Tem ainda por fundamento outra noção: a de que o valor moral de todos é igual,
não havendo por que discriminar moralmente quem pensa diferente, age diferente,
tem uma religião diferente ou simplesmente é diferente.
A igualdade universal,
base do discurso dos direitos humanos, impõe que todos, independentemente de
qualquer estado, escolha ideológica ou característica pessoal, recebam da
autoridade pública exatamente o mesmo tratamento. Em resumo, esse ideal deixa
cada um livre para perseguir seus próprios ideais absolutos, desde que não os
identifique com os ideais da República.
Não foi por acaso que a afirmação dos direitos universais teve de se fazer
historicamente contra as pretensões absolutas das concepções religiosas. Os
direitos universais podem facilmente conflitar com as religiões porque afirmar
a existência de direitos não significa apenas aceitar um sistema de
conveniências políticas. Consiste numa proposta moral forte: moral crítica,
pública, e não sobrenatural, tradicional ou revelada.
Na vida particular as pessoas
aderem a religiões e num mundo plural como o nosso aderem a religiões
diferentes. Em meio à insegurança, oferecem um importante conforto; em meio a
desigualdades, diferentes religiões apelam a diferentes grupos sociais. Tendem
a fazer apelos fortes.
É tarefa dos líderes políticos zelar para que os
mecanismos democráticos, republicanos e laicos, construídos longamente com o
sacrifício de numerosas vidas, não sejam levianamente tratados por membros da
mesma elite política, não sejam postos em risco por apelos populares ao
sentimento de identidade homogênea.
O crescimento da liberdade religiosa
propicia também o crescimento dos conflitos entre religiões organizadas e o
espaço público da tolerância e da liberdade. Podemos esperar que o tema volte
às nossas discussões políticas com frequência.
Seria muito importante que os partidos políticos não perdessem isso de vista e educassem seus membros e simpatizantes na atividade de compreender como conviver na República com respeito e justiça, mesmo para com aqueles que julgam merecer sentar-se longe deles no esperado paraíso, ou até merecessem ir para o inferno.
Seria muito importante que os partidos políticos não perdessem isso de vista e educassem seus membros e simpatizantes na atividade de compreender como conviver na República com respeito e justiça, mesmo para com aqueles que julgam merecer sentar-se longe deles no esperado paraíso, ou até merecessem ir para o inferno.
Certo que o sistema político está fragilizado. Mas é esperar o mínimo,
e não o máximo, que em nome de nossa liberdade e igualdade se rejeitem os
discursos religiosos que semeiam as divisões e no médio prazo cultivam a
violência, primeiro morais e em seguida físicas, entre os cidadãos.
* José Reinaldo de Lima
Lopes é professor associado da faculdade de Direito da USP.
* Oscar Vilhena Vieira é
professor de Direito Constitucional da Direito-FGV.
Fonte: http://www.estadao.com.br
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