“Há uma nefasta glorificação do suicídio” – Por Fernanda Aranda
Enquanto
a imprensa não fala do tema, as políticas preventivas titubeiam e os médicos
varrem o assunto para baixo do tapete, 1.339 pessoas do Brasil foram internadas
nos dois primeiros meses do ano após tentarem o suicídio.
Os dados do banco
virtual abastecido pelo Ministério da Saúde, levantados pelo iG Saúde, apontam 22 casos por dia só nos
dois primeiros meses de 2013.
Em meio ao sigilo imposto para tratar do suicídio, o
psiquiatra professor da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual de São
Paulo (Unesp) e consultor da Organização Mundial de Saúde (OMS) , José Manoel
Bertolote, quer falar aos quatro cantos do planeta.
Ele acaba de lançar um livro (O Suicídio e sua Prevenção)
com as estratégias para prevenir o evento que figura entre os líderes de causas
de morte em vários países do mundo. No Brasil, é o quarto motivo mais incidente
entre os óbitos por causas externas, atrás de homicídios, acidentes de
transporte e causas não identificadas.
Em
entrevista ao iG,
Bertolote afirma que o silêncio e o tabu que marcam o assunto não impediram o
surgimento de um “nefasto glamour em torno do suicídio”.
“São inúmeros sites na internet que ensinam, de forma
muito didática, as pessoas a cometerem suicídio. Estes endereços eletrônicos
disseminam comportamentos perigosos e precisam ser combatidos. Há uma
glorificação atual da morte provocada. São músicas, clipes, filmes que
apresentam o suicídio de uma forma artística, como uma moda a ser seguida”,
afirma.
Para reverter o quadro, o especialista neste assunto
proibido defende articulação e um debate com os líderes religiosos e com a
Justiça, que ainda considera os suicidas criminosos.
Bertolate diz ainda que são necessárias mudanças na rede
de saúde, com um trabalho forte para identificar os mais vulneráveis às lesões
autoprovocadas.
Segundo ele, as pesquisas científicas atestam que, na
maioria das vezes, há arrependimento em quem provoca a morte intencionalmente e
nem sempre há chance de reverter o dano provocado.
Entrevista:
iG: A sociedade
e a imprensa lidam com reservas com o assunto suicídio. Para a medicina o tema
também é tabu?
Bertolote: Os médicos não são treinados para
enfrentar a morte em geral, não só na questão do suicídio. Existe um mito de
que a medicina é uma luta contra a morte. Os médicos têm uma tradição de sempre
agir como se a morte fosse evitável, o que é um erro. Ninguém escapa da morte.
Diante de um óbito, os profissionais reagem mal. Os estudantes não são
preparados para falar sobre a morte com os seus pacientes, como se o perigo de
morrer não existisse.
Talvez, isso seja fruto de um distanciamento necessário para
a classe dar conta de enfrentar as situações nas emergências, nas unidades de
terapia intensiva. Mas o fato é que essa distância acaba exagerada e o assunto
é varrido para baixo do tapete. A questão do suicídio está inserida nesse
panorama. O médico não detecta os sinais prévios do suicídio e se surpreende
quando ele acontece.
Qualquer morte é uma tragédia familiar, mas quando ela é
resultante das causas naturais e de doenças crônicas, com evolução lenta, há
uma preparação familiar para o acontecimento. O suicídio, invariavelmente, é um
acidente inesperado. Pega de surpresa e desperta dois sentimentos nos que
ficam: perplexidade que desemboca em culpa. É comum os familiares se
perguntarem: ‘onde eu falhei?’, ‘o que foi que eu não vi?’. Mas também é
despertada uma raiva: ‘por que ele fez isso comigo’. São duas sensações, de
fracasso e de raiva, que atrapalham muito a recuperação desta família.
iG:
O senhor é um grande defensor da prevenção do suicídio, tema do seu último
livro. Existe uma estratégia universal de prevenção?
Bertolote: Não é possível prever todos os casos.
O suicídio continua sendo um evento raro, ainda que subestimado. Isso significa
que o custo para aplicar uma estratégia de prevenção universal, fazendo uma
avaliação de toda a população, seria muito alto diante das estatísticas de
morte não tão numerosas.
Mas o fato é que algumas pessoas são mais vulneráveis ao
suicídio do que outras. E para estas vulneráveis é imprescindível que sejam
dirigidas ações preventivas, o que não é feito. Já está embasado que doenças
como depressão, alcoolismo e esquizofrenia aumentam a vulnerabilidade ao
suicídio. Existem condições que não são doenças – no sentido do termo
– mas transtornos de comportamento que também ampliam o risco. Além delas,
sabemos que doenças físicas, crônicas, incuráveis e de natureza dolorosa também
estão mais associadas ao fenômeno.
O exemplo da aids é contundente, com estudos muito
bem-feitos. Na época em que não existiam tratamentos para o HIV, as taxas de
suicídios entre os soropositivos eram muito mais altam e foram diminuindo com o
surgimento de terapias efetivas contra o vírus. Hoje, sabemos que ainda é
necessário um trabalho preventivo com os pacientes de aids e também com os
portadores de doenças neurológicas degenerativas, certas formas de câncer e até
cefaleias (dores de cabeça muito fortes) crônicas.
Outro ponto de atenção é para as demências senis, quando
estão no início do quadro. Os idosos que preservam certa lucidez no começo dos
sintomas também estão mais vulneráveis por não saberem lidar com as limitações
impostas pela doença.
iG:
Esta associação com doenças crônicas pode ser uma das explicações para os casos
de suicídio estarem mais concentrados na população maior de 60 anos?
Bertolote: Sim. O suicídio é um fenômeno masculino,
característico de idosos e não de jovens, apesar de também acontecer entre os
mais novos. No final da vida, são acumuladas mais doenças e limitações. Elas
ficam penosas com o passar dos anos e estão associadas com este fenômeno.
iG:
É possível classificar o suicídio como uma doença ou um sintoma?
Bertolote: Suicídio é uma causa de morte. Existem
as causas naturais, as causas acidentais, os homicídios e os suicídios. Não é
uma doença. Mas é certo que é uma causa de morte frequentemente associada a certas
doenças. É bom lembrar que nem todos os depressivos são suicidas, por exemplo.
i G: Um dos temores ao falar
sobre suicídio é que o fato pode desencadear comportamentos semelhantes em
cadeia. Sua experiência mostra que isso realmente ocorre?
Bertolote: Existe o fenômeno social da imitação
e também o fenômeno do contágio. Há um emprego cada vez mais frequente de
tentativas de suicídio que são mais letais, que não existiam antes. Até anos
atrás não havia a facilidade existente hoje para conseguir uma arma de fogo.
Com isso, aumentaram as tentativas de suicídio usando este método que acabam
resultando em mortes que antes não seriam exitosas para o óbito, já que as
tentativas eram menos letais.
Outra mudança que eu considero nefasta é que hoje também
existe uma glorificação do suicídio. São inúmeros sites na internet que
ensinam, de forma muito didática, as pessoas cometerem suicídio. Estes
endereços eletrônicos disseminam comportamentos perigosos e precisam ser
combatidos. Há uma glorificação atual da morte. São músicas, clipes, filmes que
apresentam o suicídio de uma forma artística, glorificada.
Assim como num passado recente existiu o culto às doenças
mentais, disseminados por filmes do Woody Allen, por exemplo. Virou ‘cult’ ter
uma doença psíquica. Hoje, usando mecanismos muito parecidos, vejo que há uma
cultura que ostenta a morte provocada como algo ‘in’, que está na moda. É algo
nefasto porque as pessoas acabam embarcando nisso.
iG:
O senhor considera que está glorificação é resultante de quais fatores?
Bertolote: Talvez seja um reflexo do desencanto
com o contemporâneo. Digo isso sem embasamento científico nenhum ou estudo
aprofundado, mas a minha avaliação é que a glorificação do suicídio é
influenciada por essas transformações rápidas do mundo atual, sejam das formas
de comunicação ou de tecnologia. As pessoas não se adaptam, não acompanham. A
mensagem que fica é que a vida perde a graça muito fácil e neste contexto é
perigoso que as músicas, os videoclipes e a arte apresentem o suicídio de
maneira tão glamourizada.
Mas também existe um grupo que não sabe lidar com o
sofrimento e que encara o suicídio como uma possibilidade de solução. Para
estas pessoas, a morte provocada pode ser influenciada por um modelo de
transmissão. Por exemplo: caso alguém de destaque, que sirva como uma
referência, como um pai, um avô, um ídolo, cometa suicídio, a mensagem para
esta parcela é de que este pode ser um caminho a ser seguido. Por isso,
precisamos falar, sem tabus, mas de forma coerente e contundente sobre o
assunto.
iG:
Este modelo de transmissão é o que pode explicar vários casos de suicídio em
uma família? Não existiria uma explicação genética para um núcleo familiar em
que o pai comete o suicídio e anos depois o filho também, por exemplo?
Bertolote: Sim, existe esta influência da
transmissão do suicídio como alternativa que pode explicar os casos em família.
Outro ponto é que apesar de não herdarmos o ‘gene’ do suicídio, se herdam
vários genes, que estão associados a outras doenças, que deixam a pessoa mais
vulnerável e predisposta a esta causa de morte.
iG:
O senhor afirma com convicção científica que parte considerável dos suicidas
não quer morrer. Isso reforça a importância da prevenção?
Bertolote: O suicídio é uma situação de
ambivalência. Não está em questão apenas se a pessoa quer viver ou morrer. Ela
quer escapar de uma situação desagradável, angustiante, de sofrimento absoluto.
E quase sempre, quando opta pelo suicídio, percebe que não é uma boa escolha.
O arrependimento está muito catalogado em todas as
pesquisas que se propuseram a estudar o tema. São trabalhos de extrema
qualidade, feitos no Japão, em vários países da Europa, no Islã, que
entrevistaram pessoas que tentaram o suicídio, foram hospitalizadas após a
tentativa, muitas em estado grave e irreversível para a sobrevivência. É penoso
demais atestar que a maioria estava arrependida, desesperada ao constatar que a
morte era irreversível. Enfim, todos os estudos concluem que o arrependimento é
muito presente e sim reforça a necessidade de prevenção.
iG:
Desde que o senhor passou a pesquisar o suicídio, quais mudanças pontuaria na
forma de encarar este fenômeno?
Bertolote : A transformação mais importante,
ainda em curso, é a maneira como os religiosos passaram a encarar o suicídio.
Muitas religiões, independentemente do ponto de vista médico ou jurídico,
consideram o suicídio um pecado imperdoável. Este é um ponto em comum do
catolicismo, do judaísmo (que prevê até cemitérios diferentes para quem se
mata) e do islamismo, que coloca o ato como o pior dos pecados. Enquanto estive
na Organização Mundial de Saúde (OMS) insistia com frequência em trabalhar com
as lideranças religiosas para que eles entendessem este fenômeno como um
processo patológico em vez de punir as famílias e resignar aqueles que tentaram
o suicídio como um pecador imperdoável.
Busquei informações sobre esta condenação religiosa do
suicídio e constatei que há teólogos que elaboram o suicídio como pecado, mas
essa determinação ficava mais a critério de cada um. Por isso, fiz inúmeras
reuniões com bispos, líderes protestantes e islâmicos, do judaísmo e com muita
satisfação percebia que eles ficavam menos resistentes ao tema e já vejo uma
mudança de postura, de acolhimento e não de rejeição. Este comportamento por
parte das religiões implica também em mudar as leis. Em muitos países,
inclusive no Brasil, suicídio ainda é considerado crime. Porém, há pelo menos
30 anos, não tenho conhecimento de nenhum processo jurídico aberto para julgar
um caso desses. Felizmente.
iG:
Além da mudança comportamental, o senhor acredita que a estrutura de saúde
também precisa ser transformada para prevenir o suicídio?
Bertolote: Sem dúvida. Os médicos precisam ser
treinados para identificar os sinais prévios ao suicídio e também ficar atentos
aos casos mais vulneráveis. Aqui em Botucatu (interior de SP), onde atuo por
meio da Faculdade de Medicina, tomamos uma decisão: se uma pessoa comparece com
sinais de depressão a qualquer unidade de saúde, seja um posto, um hospital ou
um serviço de saúde da família, a orientação é para que ela seja acompanhada
até um serviço especializado e não encaminhada para que faça isso com as
próprias pernas. Acompanhar é diferente de encaminhar, sugerir. Se ela for
apenas encaminhada, pode ser que não chegue.
Fonte: http://saude.ig.com.br
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