O mal-estar nas ciências humanas – Por Vladmir Safatle
Nas discussões a respeito do
futuro da universidade, seja no Brasil seja em países europeus que passam
atualmente por grave crise financeira, é comum identificarmos um estranho
mal-estar em relação às ciências humanas.
Tudo se passa como se a área de ciências
humanas fosse a mais problemática por vir dela questionamentos reiterados a
respeito de processos de financiamento, avaliação e pesquisa.
É comum vermos um
certo anti-intelectualismo arraigado que acusa as humanidades de serem
irrelevantes, fazerem pesquisas atrasadas ou ideologicamente comprometidas e
não “dialogar” com a sociedade. No caso brasileiro, haveria uma longa história
a contar referente à gênese desse anti-intelectualismo e seus vínculos
orgânicos com momentos sombrios de nossa história.
No entanto, esse mal-estar não
vem apenas de atores externos à universidade. Seria fácil se assim fosse. Por
um lado, é comum instâncias internas à própria universidade mostrarem
desconhecimento profundo a respeito do tipo de pesquisa desenvolvido na área de
ciências humanas e sua multiplicidade natural.
Nos momentos em que tais
desconhecimentos afloram, somos normalmente brindados com discussões bizantinas
a respeito da inutilidade das ciências humanas, a não ser como curso de
extensão. Nessas horas, o melhor a fazer é perguntar ao interlocutor o que
pesquisadores brasileiros realmente relevantes nas ciências exatas, como os
físicos Mario Schömberg e César Lattes, teriam a dizer sobre o assunto.
“Ideologia
científica”
Mais sintomático do que isso, no
entanto, é encontrar determinadas áreas, como a psicologia e a economia,
lutando desesperadamente para não serem mais vistas como pertencentes ao quadro
das humanidades. A psicologia seria, nessa nova configuração do campo
científico que parece querer se impor, um setor das ciências biológicas que
estudaria a mente e o comportamento humano.
Afirmação que só teria algum
sentido à condição de passarmos completamente ao largo de discussões sobre o
estatuto do conceito de “comportamento”, isso sem falar em outros conceitos
fundamentais da psicologia como “aprendizado”, “percepção”, “memória”,
“desenvolvimento”, só para ficar com aqueles termos mais dependentes de
discussões que nos remetem à história da filosofia. Já a economia seria (e isto
não é uma piada feita para divertir financista em estado de choque depois da
quebra do Lehman Brothers, da concordata da GM e da estatização branca do
Citibank) uma ciência matemática.
O que há por trás desse quadro?
Certamente temos aqui uma convergência de fatores, sendo que um deles é, sem
dúvida, a incapacidade de pesquisadores da área de ciências humanas saírem de
uma posição, digamos, defensiva. Temos dificuldade em impor nossos sistemas de
avaliação, em divulgar nossas pesquisas, em analisar a natureza daquilo cujo
sintoma é o mal-estar em relação às ciências humanas.
Haveria também fatores claramente
econômicos (que nunca podem ser desprezados). Georges Canguilhem, historiador
fundamental das ciências, cunhou, décadas atrás, o termo “ideologia científica”
para descrever este processo em que uma área do saber, em constituição, se
apóia em áreas mais reconhecidas e tradicionais, mimetizando seu vocabulário e
seus métodos na esperança de, com isso, ganhar legitimidade social.
O advento
das ciências humanas foi claramente marcado por tal processo. Lembremos, por
exemplo, de como o estudo dos comportamentos sociais foi, durante bom tempo,
descrito como “física social”, isso antes de ser visto enfim como “sociologia”.
Para estruturas institucionais que, para ter suas pesquisas financiadas,
entraram em dependência profunda em relação a instituições do sistema
financeiro (como caso de vários departamentos de economia no mundo) ou a
grandes indústrias farmacêuticas (como caso do departamento de psicologia),
passar a impressão de que elas podem assegurar a previsibilidade, a
quantificação e a mensuração de áreas como a matemática e a biologia virou uma
questão não negligenciável.
A
capacidade produtiva das humanidades
No entanto, para além desses dois
fatores, vale a pena insistir em um terceiro, talvez de fato o mais importante.
A constituição das ciências humanas enquanto conjunto de campos
institucionalizados de pesquisa foi em larga medida impulsionada por
preocupações estatais de controle social de populações a partir do século 19.
Por exemplo, não compreenderemos o advento da psicologia como ciência se
negligenciarmos a importância de questões que eram dirigidas aos psicólogos
sobre a extensão da imputabilidade jurídica, a natureza do comportamento
criminoso, a falta de disposição para o trabalho, a fraqueza moral.
No entanto,
também não compreenderemos seu desenvolvimento posterior se restringirmos suas
questões apenas a esse escopo de preocupações. Pois o campo das ciências
humanas foi sempre indissociável da reflexão sobre a maneira como elas
constituem, e não apenas descrevem, o “homem” como seu objeto de análise.
Esse
é um ponto importante: a capacidade descritiva das ciências
humanas é também capacidade produtiva. Sua descrição modifica o
comportamento dos seus objetos, já que seus conceitos têm forte capacidade
normativa.
Por exemplo, descrever processos sociais a partir de sistemas
individuais de escolhas possíveis ou a partir de estruturas transindividuais
não apenas influenciará radicalmente a visão do pesquisador a respeito dos fenômenos
que ele tem diante de si. Isso influenciará também a maneira com que as
intervenções nos processos sociais se darão, assim como a configuração das
crenças sociais sobre o que nós realmente somos.
Essa “reviravolta autocrítica” é
elemento fundamental na história das ciências humanas. E, através dessa
capacidade de reviravolta, as ciências humanas, em seus melhores momentos,
forneceram quadros de reflexão sobre nossos valores sociais e sobre a maneira
como nosso discurso é capaz de, em larga medida, constituir objetos. Não apenas
um discurso sobre o homem, mas também um discurso que toma o discurso sobre o
“homem” (com toda a carga valorativa que esse termo tem) como objeto.
Mas isso nos coloca uma questão
maior: e se não quiséssemos mais criticar nossos processos, valores e nossa
visão dos sujeitos? Desejo de preservação que não viria do fato de termos
alcançado um consenso profundo a respeito de nossos ideais sociais, mas do fato
de termos medo do futuro, de termos perdido a força de criar novos processos e
valores. Numa situação como essa, de fato, as ciências humanas perdem toda a
sua relevância.
Quando questionamos a relevância
das ciências humanas, questionamos, no fundo, a importância de compreender o
que está por trás de fenômenos como: a modificação na estrutura da autoridade
paterna no interior das famílias (psicologia), a participação de grandes grupos
econômicos na gestão da ditadura militar (história), as consequências das
modificações na estrutura da sociedade do trabalho (sociologia), os impasses de
nossas democracias contemporâneas na sua procura de dar realidade institucional
a exigências sociais de reconhecimento (ciências políticas), o impacto dos
desenhos animados na construção da criança como categoria da sociedade de
consumo (estudos de mídia), o que está por trás da nossa “construção” do
Oriente etc.
Mas talvez a questão seja: sobre esses fatos, há algo que não
queremos saber, há algo que preferimos não saber. Só assim poderemos perpetuar
nossas formas de vida, mesmo que elas estejam profundamente desgastadas.
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