As religiosidades expressam a dinamicidade cultural brasileira - Por Graziela Wolfart
Cairo Mohamad Ibrahim Katrib
defende que a religiosidade é a mais democrática das formas de expressão da
cultura e da identidade de um dado grupo social.
“São através delas que as
pessoas conectam passado e presente, real e sobrenatural, individual e
coletivo”
Na opinião do professor e
pesquisador Cairo Mohamad Ibrahim Katrib, “o mais importante em relação às
memórias e narrativas em torno das religiosidades brasileiras é a necessidade
de valorizá-las e compreendê-las enquanto linguagens sociais, culturais e,
consequentemente, históricas, que propiciam aos sujeitos e aos grupos sociais
fortalecerem seus laços identitários, recuperar os sentidos do viver e fazer
com que as dificuldades do dia a dia pareçam insignificantes frente às
expressões de fé, devoção e encontro com o sagrado”.
Na entrevista que concedeu
por e-mail à IHU On-Line, ele constata uma “miscelânea de práticas no campo da
religiosidade brasileira que incorporou, ao longo dos séculos de nossa
história, elementos das comunidades indígenas, negras, europeias, dos grupos de
imigrantes e migrantes que se movimentaram país adentro, formatando a nossa
identidade cultural”.
E continua: “quando falamos em religiosidade brasileira
vislumbram aos nossos olhos as mais diversas formas de devoção, a maioria
marcada pela realização de romarias, festejos aos santos padroeiros tudo
comemorado com muita cor, batuque, fé e ludicidade”.
Cairo Mohamad Ibrahim Katrib é
docente no curso de graduação em História da Universidade Federal de
Uberlândia, Campus Pontal – Ituiutaba. Doutor em História Cultural pela
Universidade de Brasília – UnB, é mestre em História pela Universidade Federal
de Uberlândia. É também coordenador da área de pesquisa e extensão das Ciências
Humanas e Sociais Aplicadas da Faculdade de Ciências Integradas do Pontal –
FACIP/UFU.
Confira a entrevista
IHU On-Line – O que é importante resgatar em relação às memórias e às narrativas das religiosidades populares?
Cairo Mohamad Ibrahim Katrib – Penso que o mais importante em relação às memórias e narrativas em torno das religiosidades brasileiras é a necessidade de valorizá-las e compreendê-las enquanto linguagens sociais, culturais e, consequentemente, históricas, que propiciam aos sujeitos e aos grupos sociais fortalecerem seus laços identitários, recuperar os sentidos do viver e fazer com que as dificuldades do dia a dia pareçam insignificantes frente às expressões de fé, devoção e encontro com o sagrado. É claro que essas memórias muitas vezes são silenciadas ou ecoam apenas entre os praticantes de uma dada prática cultural. Mesmo assim, ali, no seu grupo e para aquelas pessoas, ela assume um sentido mais dinâmico que passa a ser sinônimo da própria vida. Para os atores sociais que tecem os fios da narrativa de suas representações culturais, sejam elas festivas ou devocionais, a memória é atualizada, justamente pela possibilidade do viver de muitas formas a sua relação com o sagrado, expressando em sentimentos o tempo ido, sua ancestralidade, a memória coletiva ou familiar, a suas pertenças identitárias. Enfim, por mais que as pessoas atualmente se insiram num universo em que prevalecem as individualidades, em algum bairro ou comunidade dos grandes centros ou do interior do país, seja no campo ou nas cidades, há sempre alguém ou algum grupo celebrando a vida com fé e com festa, já que o Brasil é, por natureza, um país festeiro.
IHU On-Line – O que caracteriza as religiosidades populares no Brasil atual? Quais são suas marcas?
Cairo Mohamad Ibrahim Katrib – Talvez seja sua capacidade de reinvenção, de recriação de seus sentidos. Por mais que sejamos vistos como um país católico, as práticas religiosas atuais vêm se reinventando a cada dia para continuar existindo e estabelecendo vínculos com seus praticantes. Há uma miscelânea de práticas no campo da religiosidade brasileira que incorporou, ao longo dos séculos de nossa história, elementos das comunidades indígenas, negras, europeias, dos grupos de imigrantes e migrantes que se movimentaram país adentro, formatando a nossa identidade cultural. Basta relermos as manifestações da religiosidade popular que traz nas suas representações a nossa construção cultural luso-afro-ameríndia, dentre outros aspectos. Quando falamos em religiosidade brasileira vislumbram aos nossos olhos as mais diversas formas de devoção, a maioria marcada pela realização de romarias, festejos aos santos padroeiros tudo comemorado com muita cor, batuque, fé e ludicidade como é o caso das romarias nordestinas em devoção a padre Cícero , o Círio de Nazaré , as Congadas , Folias do Divino ou Santos Reis, as festas juninas, a peregrinação aos santuários, aos espaços de religiosidade afro-brasileira.
IHU On-Line – O que as religiosidades populares têm a dizer sobre a forma de viver a fé, a crença religiosa no Brasil contemporâneo? Que novos sentidos esses festejos dão aos valores culturais e religiosos tradicionais?
Cairo Mohamad Ibrahim Katrib – As religiosidades expressam a dinamicidade cultural brasileira. É a mais democrática das formas de expressão da cultura e da identidade de um dado grupo social. São através delas que as pessoas conectam passado e presente, real e sobrenatural, individual e coletivo cada qual utilizando de suas ferramentas ou dos seus mecanismos de reencontro consigo mesmas. Não há quem no Brasil nunca tenha recorrido ao Divino nos momentos de aflição; não há quem nunca tenha se pego fazendo sinal da cruz, colocando um raminho de arruda ou guiné no pé da orelha, utilizado de algum patuá ou amuleto para buscar sorte ou se proteger, ou tenha apelado para uma promessa diante de certa dificuldade material. O acreditar é o que faz com que a religiosidade contemporânea possa ser experimentada de diversas formas.
No que concerne às manifestações populares, elas são a materialização da fé e da religiosidade latente do brasileiro. São através do partilhar, da construção dos momentos de sociabilidades que as pessoas comungam coletivamente a sua devoção, os seus sentimentos religiosos. É por esse motivo que é comum no Brasil que as pessoas, em agradecimento às bênçãos recebidas, celebrem com muita festa as graças alcançadas sempre regada a muita reza e comilança. É assim que se reza e se festeja no Brasil. É assim que expressamos nossos vínculos com o sagrado; é compartilhando e socializando a devoção, a crença, a fé que estreitamos os nossos laços culturais reestabelecendo o sentido do viver coletivamente a própria vida. É claro que a atualização dos festejos da religiosidade popular se efetiva de diversas maneiras, nunca com a intenção de trazer à tona um passado congelado, engessado. A própria cultura, por mais tradicional que pareça ser, é recriada para continuar sendo referência aos diferentes grupos sociais. E dessa possibilidade de reinvenção que estreitam seus vínculos com o grupo social do qual se inserem, que reconstroem a relação com sua ancestralidade e fortalecem os alicerces para lutar contra as agruras cotidianas.
IHU On-Line – Qual a especificidade da Festa em louvor a Nossa Senhora do Rosário, em Catalão, Goiás, nesse sentido?
Cairo Mohamad Ibrahim Katrib – A festa em louvor a Nossa Senhora do Rosário em Catalão, Goiás, é considerada uma das maiores comemorações a santos de devoção católica do país. É celebrada oficialmente há 136 anos. Ela tem suas peculiaridades construídas e reconstruídas ao longo dos anos. É uma comemoração que se iniciou no campo e se transferiu para a cidade à medida que foi servindo de vitrine de projeção social e política aos fazendeiros locais (tidos como incentivadores dessa manifestação) que transferem seus raios de atuação do campo para a cidade por meio do próprio deslocamento desse festejo, mas que, independentemente do controle político desses grupos sociais, foi ganhando vida própria e caminhos diversos. Tanto é que, ao passo que além de ser a maior festividade de devoção católica do estado e – quem sabe – uma das maiores do país, ela não se edificou somente em torno da devoção a Nossa Senhora do Rosário, mas passou a ser nacionalmente conhecida pelas suas congadas. Em Catalão hoje são mais de quatro mil praticantes distribuídos em 23 grupos de moçambiques, catopés, vilões, marinheiros, congos dentre outros, que durante todo o ano se preparam para comemorar com muita dança, música e devoção à África distante, às heranças ancestrais e familiares reordenando a sua identidade e religiosidade herdada. A junção da congada com a devoção à Santa do Rosário exprime muito bem o tom que as festas da religiosidade brasileira foram ganhando ao longo de suas trajetórias. Ela expressa a importância do reconhecimento e da valorização da cultura afro-brasileira e sua importância para a formação e compreensão da nossa identidade cultural. Essas práticas populares se redesenharam não só com as cores acinzentadas da cultura religiosa católica, mas também pelas matizes de muitas cores que compõem a nossa própria identidade cultural. Para compreender essas colocações é preciso conhecer de dentro e de fora essa festa centenária que se mantém viva por meio dos alicerces do sagrado e do profano, já que festejar Nossa Senhora do Rosário em Catalão é se inserir no universo do comércio temporário a céu aberto das mais de três mil barracas instaladas nas ruas próximas à igreja do Rosário que vendem de alimentos a produtos eletrônicos; é ver as ruas tomadas pelo arco-íris de cores das fardas dos dançadores dos diversos grupos de congada; é participar dos terços na praça da Igreja; é partilhar dos cafés e almoços coletivos oferecidos a toda a cidade nos dias de festa. Para entender a riqueza cultural dessa manifestação é necessário visitar Catalão no mês de outubro.
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